quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Passado e o Futuro ambos residem no presente

O Passado e o Futuro ambos residem no presente

Quando pensamos sobre o passado, sentimentos de lamentos ou vergonha podem surgir. Quando pensamos sobre o futuro, sentimentos de desejo ou medo podem vir a tona. Mas todos os sentimentos surgem no momento presente e todos eles afetam o momento presente. A maioria do tempo, seu efeito não contribui para nossa felicidade ou alegria. Temos que aprender como encarar estes sentimentos. A principal coisa que precisamos lembrar é que o passado e o futuro estão ambos no presente e se tomarmos conta do momento presente então também transformaremos o passado e o futuro.

Como podemos transformar o passado? No passado podemos ter dito ou feito algo destrutivo ou que possa ter ferido alguém e agora lamentamos. De acordo com a psicologia budista, lamento é uma “emoção indeterminada”. Isto significa que pode ser construtiva ou destrutiva. Quando sabemos que algo que dissemos ou fizemos causou dano, podemos fazer surgir uma mente de arrependimento, prometendo que no futuro não repetiremos o mesmo erro. Neste caso, nosso sentimento de lamento é saudável. Se, por outro lado, o sentimento de lamento continua a nos perturbar, tornando impossível que nos concentremos ou qualquer outra coisa, nos tirando toda paz e alegria de nossas vidas, então este sentimento de lamento tem um efeito não saudável.

Quando o lamento se torna não saudável, deveríamos inicialmente distinguir se a causa estava baseada em algo que fizemos ou dissemos ou em algo que deixamos de dizer ou fazer. Se no passado, dissemos ou fizemos algo destrutivo, podemos chamar isso de um “erro de ação”. Dissemos ou fizemos algo com falta de plena atenção, e isso causou dano.

Às vezes cometemos um “erro de omissão”. Causamos dano por não dizer ou fazer o que precisava ser feito ou dito, e isto nos trouxe lamento e tristeza. Nossa falta de plena atenção estava presente e seus resultados ainda estão presentes. Nossa dor, vergonha e lamento são uma parte importante desse resultado. Se observarmos o presente profundamente e tomarmos conta dele, podemos transformá-lo. Fazemos isso por meio da plena consciência, determinação, ações corretas e fala correta. Tudo isso acontece no momento presente. Quando transformamos o presente desta maneira, também transformamos o passado e ao mesmo tempo, construímos o futuro.

Se dissermos que tudo está perdido, tudo está destruído ou que o sofrimento já aconteceu, nos não estamos vendo que o passado se tornou o presente. É claro que o sofrimento já foi causado e as feridas desse sofrimento podem tocar exatamente na nossa alma, mas ao invés de lamentarmos ou sofrermos pelo que fizemos no passado, deveríamos tomar conta do presente e transformá-lo. Os traços de uma seca ruim só podem ser apagados por uma generosa chuva e ela só pode cair no momento presente.

No budismo o arrependimento é baseado no entendimento que a ação errada se origina na mente. Há um gatha do arrependimento:

Todas as ações errôneas surgem por causa da mente.
Se a mente é transformada, podem as ações errôneas continuarem?
Depois do arrependimento, meu coração está leve
Como a nuvem flutuando livre no céu.

Devido à nossa falta de plena consciência, como nossa mente estava obscurecida pelo desejo, raiva e ciúme, agirmos de forma errada. Isto é o que significa “Todas as ações errôneas surgem por causa da mente“. Mas se as ações errôneas surgem da nossa mente, podem também serem transformadas pela nossa mente. Se nossa mente é transformada, então os objetos percebidos pela nossa mente também serão transformados.

Tais transformações estão disponíveis se soubermos como retornar ao momento presente. Uma vez que tivermos transformado nossa mente, nosso coração ficará tão leve como uma nuvem flutuante e nos tornaremos fonte de paz e alegria para nós mesmos e para os outros. Ontem talvez por causa de alguma bobagem ou raiva dissemos algo que fez nossa mãe triste. Mas hoje nossa mente está transformada e nosso coração leve, e podemos ver nossa mão sorrindo para nós, mesmo se ela não está mais viva. Se pudermos sorrir dentro de nós mesmos, nossa mãe também poderá sorrir conosco.

Se pudermos transformar nosso passado, poderemos também transformar o futuro. Nossas ansiedades e temores do futuro fazem o presente escuro. Não há dúvidas que o futuro será escuro também, porque o futuro é feito do presente. Tomar conta do presente é a melhor forma de tomar conta do futuro. Às vezes, como ficamos tão preocupados com o que acontecerá no dia seguinte, nos reviramos a noite toda incapazes de dormir. Preocupamo-nos que se não dormirmos durante a noite ficaremos cansados no próximo dia e incapazes de atuar com o melhor de nossa habilidade.

Quanto mais nos preocupamos, mais difícil é para dormirmos. Nossas preocupações e medos do futuro destroem o presente. Mas se pararmos de pensar sobre o amanhã e apenas ficarmos na nossa cama e seguirmos nossa respiração, realmente desfrutando da oportunidade que temos de descansar, não apenas iremos saborear os momentos de paz e alegria sob os cobertores quentes, mas também iremos cair no sono facilmente e naturalmente. Este tipo de sono é uma grande ajuda para fazer do dia seguinte um grande sucesso.

Quando ouvimos que as florestas do planeta estão doentes e morrendo rapidamente, podemos nos sentir ansiosos. Estamos preocupados com o futuro porque estamos conscientes do que está acontecendo no presente momento. Nossa consciência pode nos motivar a fazer algo para parar a destruição de nosso ambiente. Obviamente, nossa preocupação pelo futuro é diferente dos temores e ansiedade que apenas nos drenam forças. Temos que saber como desfrutar a presença das árvores bonitas e saudáveis de forma a sermos capazes de fazer alguma coisa para protegê-las e preservá-las.

Quando jogamos uma casca de banana no lixo, se formos plenamente atentos, saberemos que a casca se tornará composto e renascerá como um tomate ou uma salada de alface em apenas poucos meses. Mas se jogarmos uma sacola de plástico no lixo, graças a nossa consciência, saberemos que a sacola não se tornará um tomate ou uma salada de alfaces muito rapidamente. Alguns tipos de lixo precisam de 400 ou 500 anos para se decompor. O lixo nuclear precisa de 250.000 anos antes de deixar de ser perigoso e retornar ao solo. Se vivermos no momento presente de forma desperta, tomando conta do momento presente com todo nosso coração, não faremos coisas que nos destruirão no futuro. Esta é a forma mais concreta de fazer o que é construtivo no futuro.

Na nossa vida diária, podemos também produzir venenos para nossas mentes e estes venenos destruirão não apenas a nós mas também àqueles que vivem conosco, no presente e no futuro também. Budismo fala sobre três venenos: desejo, aversão e ignorância. Adicionalmente há outros venenos cuja capacidade de ferir é grande: ciúme, preconceito, orgulho, suspeita e teimosia.

Na nossa relação diária conosco mesmos e nosso ambiente qualquer um destes venenos pode se manifestar, queimar e destruir nossa paz e alegria, assim como a paz e alegria daqueles ao nosso redor. Estes venenos podem persistir e poluir nossas mentes, causando amargas conseqüências no futuro.

Portanto viver no momento presente é também aceitar e encarar estes venenos assim que surgirem, manifestarem e retornarem ao inconsciente e praticar a meditação de observação para transformá-los. Esta é uma prática budista. Viver no momento presente é também ver as coisas saudáveis e maravilhosas de forma a nutri-las e protegê-las. Felicidade é o resultado direto de encarar as coisas e ficar em contato. Esta felicidade é o material do qual um lindo futuro é manufaturado.


(Do livro “Our appointment with life”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Faisão

O Faisão

No sutra das cem parábolas, o Buda conta uma história sobre palavras e conceitos. Um homem tolo ficou doente e quando o médico veio vê-lo, ele disse que apenas faisão poderia curar sua doença. Depois que o médico saiu, o paciente repetiu a palavra “faisão” por horas e horas e dia após dia. Meses se passaram, mas ele ainda não tinha ficado curado. Um dia, um amigo veio visitá-lo e ouvindo o homem repetir a palavra “faisão” repetidas vezes, perguntou a ele o porquê.

O homem doente disse ao amigo o que o médico tinha dito e, com pena dele, seu amigo pegou um lápis e desenhou um faisão. Ele mostrou ao homem tolo e lhe disse, “É com isto que um faisão se parece. Você tem que comer isto se quiser curar sua doença. Apenas repetir a palavra ‘faisão’ não é suficiente”.

Assim que o amigo saiu, o homem tolo colocou o desenho do faisão na sua boca, mastigou e engoliu. Por não conseguir um bom resultado com isso, ele contratou um artista que desenhou centenas de outros faisões e ele mastigou e engoliu todos eles. Mas sua doença apenas piorava e finalmente ele entrou em contato com o médico novamente.

Quando o médico viu o que havia acontecido, ficou com muita pena. Ele pegou a mão do homem tolo e foi com ele no mercado. Lá compraram dois faisões, ele acompanhou o homem até a sua casa, o ajudou a preparar a refeição e pediu ao homem para comer na sua frente. Depois disso o homem tolo ficou curado.

Quando ouvimos esta história podemos pensar como o homem era incrivelmente estúpido. Mas quando olhamos com maior profundidade, podemos ver que nós mesmos não somos muito melhores. Como nos falta inteligência e habilidade, estudamos o Dharma e o discutimos por diversão ou simplesmente para nos exibirmos. Não estamos determinados o suficiente para nos libertarmos dos nossos sofrimentos mais profundos. Permanecemos apegados a palavras e idéias, tanto nos nossos estudos quanto na nossa prática. Pode também faltar inteligência e habilidade na maneira como contamos nossas respirações, praticamos a meditação da bondade amorosa ou recitamos mantras. Podemos ficar presos na forma. Não é fácil fazer surgir entendimento desperto.

Os ensinamentos do Buda não nos são oferecidos como visões ou noções para nos agarrarmos, mas como instrumentos de prática. Se ficarmos presos em visões e noções perderemos os verdadeiros ensinamentos. O Sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” (*) é um tipo de ensino de plena consciência. Ele nos lembra de sermos cuidadosos, atentos e abertos ao recebermos os ensinamentos do Buda, entendendo-os de forma que possamos fazer uso deles de forma a nos transformar e nos ajudar a ter mais paz, iluminação e liberdade.

Praticamos para ter alegria e felicidade. Praticamos para trazer alívio para uma situação difícil. E quando a plena consciência é poderosa o suficiente, nossa concentração será significativa e poderá nos ajudar a ter insight, entendimento e sabedoria que podem nos libertar da dor, lamento e medo. O propósito último da prática budista é ganhar insight de forma a ter libertação das nossas aflições – nosso medo, raiva, desejo e desespero. Trazer alívio é bom, sofremos menos, mas o problema ainda permanece.

Apenas quando temos insight poderemos verdadeiramente ser libertados. No budismo falamos de emancipação ou salvação através do insight, não por graça, apesar de o insight ser uma espécie de graça. Na aparência parece ser algo contraditório, mas se olharmos em profundidade, veremos que o insight é um tipo de graça – o maior tipo de graça, porque nos ajuda a nos libertar. O Buda disse que se não formos atentos, se não trouxermos todo o nosso coração e mente, todo o nosso ser para o estudo dos sutras e escuta do Dharma, poderemos entendê-los de uma maneira errada. A libertação só é possível quando somos capazes de corrigir nossas impressões.
Ensinamentos, idéias são como um fósforo. O fósforo gera a chama, que é o insight. Um ensinamento, uma noção, não é insight. Mas se praticarmos, podemos produzir o insight vivo, a sabedoria viva. Muitos de nós, incluindo muitos estudiosos budistas ficam presos a palavras e conceitos. Apegamos-nos a palavras, doutrinas, ensinamentos e não somos livres, nos tornamos dogmáticos. Mas uma vez que temos insight, ele queima nossas idéias e noções, assim como a chama queima o fósforo que lhe deu vida.

Nunca deveríamos considerar qualquer ensinamento ou ideologia como a verdade absoluta, são apenas meios de ganhar insight. Não deveríamos matar ou ser mortos por causa de uma idéia. Se nos tornamos dogmáticos, poderemos nos tornar ditadores, querendo que todos aceitem o que dizemos, acreditamos que temos a verdade e quem não concorda conosco é nosso inimigo.

Isto cria mais guerra, conflito e discriminação. A maioria das guerras nasceu do fanatismo a religiões ou ideologias. Este ensinamento do Buda - desapego a visões - é uma prática profunda de paz. Nós estamos prontos para soltar nossa visão de forma a ganhar insight. Este também é o espírito da ciência. Se um cientista fica preso a uma descoberta e pensa que é a verdade absoluta, não tem esperança de achar algo mais profundo, algo superior. Temos que queimar todas as noções para que o insight fique presente. Um verdadeiro praticante nunca é dogmático, nunca se apega a idéias e noções, mas faz uso delas para produzir insights, a visão correta.

O sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” nos lembra que práticas como os Três Selos do Dharma – impermanência, não-eu e nirvana – são úteis, com a condição que você saiba como aprendê-las. Caso contrário, estas noções se tornam muito perigosas e uma vez que você é capturado por elas, é muito difícil sair. Há muitos budistas que estão presos a idéias, palavras e conceitos. Eles perderam o budismo, apesar de se dizerem verdadeiros budistas. Este sutra é um grande ensino de plena consciência para todos nós, nos lembrando para termos cuidado, sermos abertos e não sermos dogmáticos e com a mente estreita de forma de termos uma chance de entender e receber o verdadeiro ensinamento do Buda.

Os ensinamentos da impermanência, não-eu e nirvana são comuns a todas as escolas de budismo. Estes ensinamentos são suficientemente profundos. Se praticarmos inteligentemente, poderemos usar estas noções para ganhar o insight que precisamos. Penso que este é o grande presente do Buda. Ser capaz de receber ou não depende de cada um de nós.

Budismo não é uma filosofia ou uma descrição da realidade. Budismo é apenas um conjunto de dispositivos, meios hábeis que nos ajudam a praticar e ganhar o insight que precisamos para nossa libertação e para nos soltar de nossas aflições. Se pudermos ajeitar nossa vida para ficaremos menos ocupados, teremos uma chance maior de aprofundarmos nosso entendimento do Dharma e o colocar em prática.

No budismo dizemos: a libertação é possível através do insight. Impermanência, não-eu e nirvana são como ferramentas nos dadas para limparmos o terreno e plantar a vegetação. A ferramenta não é para ser colocada no altar para adoração, tem que ser usada. O sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” é um lembrete gentil, mas efetivo que os ensinamentos do Buda são ferramentas maravilhosas para nos ajudar a nos trazer mais fundo no coração da realidade.
extraido de
http://www.viverconsciente.com/textos/o_faisao.htm
(Do livro “Thundering Silence”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
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(*) Para maiores informações sobre o sutra leia o livro Thundering Silence de Thich Nhat Hanh