quarta-feira, 31 de março de 2010

Os Três Refúgios

Em Busca do Corpo do Dharma, o Corpo da Verdade

Hoje eu gostaria de entrar um pouco mais em detalhes quanto ao assunto da fé. No nosso encontro passado dissemos que o objeto fé não deveria ser uma idéia, uma noção. Deveríamos tentar o máximo possível para persistir na prática. A fé deve ser desenvolvida baseada na nossa percepção, na nossa experiência direta.

Na tradição budista praticamos os Três Refúgios: Eu busco refúgio no Buda. Busco refúgio no Dharma. Busco refúgio na Sangha. Sempre digo que buscar refúgio não é propriamente um problema de crença. É um problema de prática. Não significa ter que declarar a fé no Buda. Nós precisamos realmente buscar refúgio no Buda. Mas o que significa buscar refúgio no Buda? Como isso é feito?

Quando olhamos profundamente, vemos que os Três Refúgios podem ser compreendidos de duas maneiras. Uma é a prática de buscar proteção. Desejamos ser protegidos. A vida é cheia de perigos, não sabemos o que nos acontecerá hoje ou amanhã, e por isso temos a sensação de viver na insegurança. Todos temos a necessidade de refúgio, de buscar proteção interior. Por isso, refugiar-se no Buda significa buscar segurança no Buda.

Depende de como percebemos e compreendemos o que e quem é o Buda, bem como se a nossa prática é mais ou menos profunda e podemos fazer a distinção entre "budismo popular" e "budismo profundo". Estas duas coisas não são necessariamente opostas. Em princípio, podemos pensar que o Buda é diferente de nós - outra pessoa. Algumas pessoas talvez pensem que o Buda é um Deus, e outras sabem que o Buda é um ser humano como nós, mas alguém que praticou e alcançou um nível muito elevado de iluminação, compreensão e compaixão. Entretanto, pensamos que aquela pessoa é alguém diferente de nós e que temos que ir ao seu encontro em busca de refúgio: Buddham Saranam Gacchami. Vou ao encontro do Buda em busca de refúgio.

Se praticarmos direito, algum dia chegaremos a compreender que o Buda realmente não é outra pessoa. O Buda está entre nós, porque a substância da qual o Buda é feito é a energia da conscientização, da compreensão e da compaixão. Se praticarmos direito e prestarmos atenção a Buda, saberemos que a natureza do Buda está dentro de nós. Nós temos a capacidade de despertar, de ter compreensão e compaixão. Por isso, agora fizemos progresso e estamos buscando o Buda dentro de nós. Buda deixa de ser o outro. Buda pode ser encontrado em qualquer lugar, especialmente dentro de nós mesmo. A não ser que entremos em contato com a natureza de Buda ou com a comunidade budista, não poderemos chegar a Buda. Se Shakyamuni, o Buda histórico, possui a natureza do Buda, nós também temos a nossa própria natureza de Buda. É onde teremos que chegar.

Quando começamos, dizemos: "Refugio-me no Buda." Posteriormente dizemos: "Refugio-me no Buda dentro de mim." É por isso que os chineses, japoneses, vietnamitas e coreanos cantam quando recitam os Três Refúgios. "Refugio-me no Buda dentro de mim”. "Refugio-me no Buda, aquele que me mostra o caminho nesta vida. "Aquele" que me mostra o caminho nesta vida começa por ser Shakyamuni, o Iluminado. Mas se praticarmos bem conseguiremos progredir. Então saberemos que ele não é outra pessoa, porque têm a natureza do Buda dentro de nós e nos refugiamos nesta natureza interior. Torna-se uma experiência direta, e o objeto da nossa fé deixa de ser uma idéia sobre uma pessoa chamada Shakyamuni, uma idéia sobre a característica do Buda, sobre a natureza do Buda. Neste momento não estaremos tocando a natureza do Buda como uma idéia, mas como uma realidade. A natureza do Buda é a capacidade de estar desperto, consciente, concentrado e sensato. E sabemos muito bem que aquela é a realidade que podem tocar dentro de nós mesmos a qualquer momento.

Refugiar-se no Buda significa tocar a natureza do Buda em nós, tocar a semente da iluminação em nós, ter uma experiência direta da natureza desta iluminação, para obter e abrir o pensamento para a iluminação, para a profunda impressão da iluminação. Bodhicita é o desejo mais profundo em cada um de nós, o desejo de nos tornarmos despertos, conscientes, de nos libertarmos do sofrimento e ajudar os seres vivos.

Buscar refúgio no Buda desta maneira será a prática de gerar a energia do amor. Vermos o sofrimento em nós mesmos e ao seu redor, e estarmos determinados a dar um fim neste sofrimento, entrando em contato com a natureza da compreensão, da compaixão e da iluminação em nós. Assim, nos tornamos propensos à iluminação, e isso desperta o interesse em nos tornarmos um Bodhisattva, para trazer alívio e transformação a todos os seres vivos. É uma afirmação muito poderosa e uma prática também muito poderosa. Uma vez plenos da energia de Bodhicitta, nos tornamos imediatamente um Bodhisattva.

"Obter a mais intensa disposição para a iluminação" quer dizer de um modo bastante direto que a mente mais elevada é Bodhicitta - a produção da mente do amor. Sabemos de imediato que não se limita a uma simples fórmula a ser recitada ou a uma tentativa de buscar refúgio ou proteção. É muito mais do que isso. Significa proteção, claro, mas é o tipo mais elevado de proteção. Quando entendermos que temos a natureza do Buda dentro de nós, quando soubermos que a energia da mente do amor está em nós, então nos tornaremos um Bodhisattva e conseguiremos enfrentar qualquer espécie de perigo ou dificuldade.

Refugiando-me no Dharma interior, desejo que todos aprendamos e dominemos os portais do Dharma, e assumamos, juntos, o compromisso com o caminho da transformação. Quando nós queremos realmente nos refugiar no Dharma, precisamos aprender e dominar todos estes ensinamentos e práticas oferecidos pelo Buda e a Sangha. “Assumamos juntos o compromisso com o caminho da transformação" significa que a prática deve ser contínua, todos os dias da nossa vida, e que o trabalho de transformação deve ser feito todos os dias. Então não é apenas um problema de crença, de proteção, mas de prática. O Dharma é para ser praticado. Uma simples declaração não ajuda muito. É fundamental que vivamos conforme a afirmação que fizemos.

Refugiando-me na Sangha interior, desejo que todos sejamos capazes de erigir as quatro comunidades, orientando, admitindo, educando e transformando todos os seres vivos. As quatro comunidades são a Sangha dos monges, das monjas, dos homens leigos e das mulheres leigas.

Quando nós recitamos o Terceiro Refúgio, sabemos que temos coisas a fazer. Nosso trabalho é ajudar a construir a Sangha, porque a Sangha é o único instrumento através do qual podemos compreender o ideal do Buda e o Dharma. Uma Sangha verdadeira é como um veículo transportando o Buda e o Dharma. Sem a Sangha não podemos ajudar os seres vivos. Não podemos fazer o trabalho de transformação no mundo. Por isso, quando nos refugiamos na Sangha precisamos realmente participar do trabalho de construção da Sangha. É necessário que usemos nossos talentos para reunir, envolver e torná-la um corpo sólido. Também significa educar, transformar e fazer com que a Sangha seja mais bonita.

Se fizermos uma pequena comparação com a tradução antiga, veremos algumas diferenças. A tradução antiga diz: "Quando me refugio no Dharma interior, fico ansioso para que todos sejam capazes de penetrar profundamente na tripitaka, os três cestos, e sua sabedoria será tão grande quanto o oceano." A nova frase é uma fórmula mais prática. Quando nos refugiamos no Dharma, não temos apenas que aprender os Sutras, precisamos realmente estarmos familiarizados e dominarmos as práticas concretas, os portais do Dharma. E, junto com outras pessoas, empenharmos no caminho da compreensão. Não é suficiente desejar que todos sejam capazes de penetrar profundamente nos três cestos, que consistem no discurso e na percepção dados pelo Buda, bem como na apresentação sistemática dos seus ensinamentos transmitidos um século após o seu falecimento. Significa que você pode ser um líder, unificar e liderar a Sangha e que não existem obstáculos – e fazê-lo livremente.

Se a pessoa se considera um bom praticante, então a construção da Sangha é o seu trabalho. Onde quer que esteja, precisa investir o seu tempo e energia na construção da Sangha. A pessoa organiza os quatro componentes da Sangha: monges completamente ordenados, monjas totalmente ordenadas, homens leigos e mulheres leigas. Ela reúne estes quatro componentes e admite, educa e transforma seres vivos.

A prática das Cinco Faculdades: fé, aplicação, conscientização, concentração e percepção. Fiel ao princípio, precisamos buscar a maneira de prosseguir. O princípio é estabelecido no início. O objeto da fé não deve ser uma noção pura e simples, uma mero conceito ou uma idéia. Deve ser uma verdadeira percepção da realidade, verdadeira experiência direta.

De forma que quando alguém diz "Creio no Buda. Creio no Dharma. Creio na Sangha", o Buda, o Dharma e a Sangha não devem ser simples idéias se nós realmente queremos evoluir. "Creio na natureza da iluminação inerente dentro de mim" pode ser uma declaração de fé feita por budistas. Juntamente com aquela declaração, a pessoa precisa praticar, precisa ser capaz de tocar e reconhecer a natureza da iluminação dentro dela mesma; caso contrário, não será uma prática, será apenas uma declaração, nada mais que uma idéia.

Qual é a natureza da iluminação? Existem tantas pessoas, inclusive budistas, que falam sobre a natureza da iluminação, mas que na verdade não sabem o que é - o que é a característica budista. A natureza da iluminação é o que temos e podemos tocar na via cotidiana. Já sabemos que conscientização é a energia que podemos gerar dentro de nós. Quando caminhamos meditando, temos consciência de cada passo que damos. Caminhar meditando é o que nós podemos fazer. Sabemos que a conscientização é algo real e não uma simples idéia, e que, se for bem trabalhada, pode desenvolver a força da conscientização todos os dias, transformando-a em uma fonte poderosa de energia dentro de nós.

Existe uma canção que diz que a conscientização é o Buda. Ao gerar esta energia, trazemos Buda ao momento presente como a energia de proteção que nos orientará e apoiará. Queremos proteção, mas qual o tipo de agente que nos está protegendo? Uma noção? Não, uma noção não é suficiente para nos proteger. Nem mesmo a noção do Buda, de Deus, do Espírito Santo são suficientes para nos proteger. Precisamos de algo mais concreto do que uma noção para que a proteção seja real.

Sabemos que a conscientização é a energia que pode nos proteger. Quando estamos dirigindo, é a conscientização que evita acidentes. Se você é um trabalhador manual em uma fábrica, é a conscientização que evita acidentes. Conversando com alguém, a conscientização ajuda a não fazer declarações que podem provocar o rompimento do relacionamento. A conscientização, então, é o Buda, o agente para a proteção. É o Buda, não como noção, mas como algo verdadeiro, real. Ao tocar a natureza da conscientização interior, sabemos que estamos sobre uma base sólida.

Todos os Budas e Bodhisattvas afirmam que temos, interiormente, a natureza da iluminação. A natureza da iluminação é a base dos nossos seres e da nossa prática. Se estamos de posse disto, não há motivo para ficarmos confusos. Desta base, a energia da conscientização, da concentração e da sabedoria pode nascer como um agente protetor. Também significa que temos uma orientação a seguir. Sem uma orientação, estamos perdidos. Não podemos ser felizes. É muito importante sabermos aonde ir; caso contrário, sofreremos muito. Esta é a natureza da fé como compreendida nos ensinamentos de Buda.

(Do livro “Jesus e Buda Irmãos” – Thich Nhat Hanh)

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terça-feira, 30 de março de 2010

Aceite a si mesmo

Manifestações

Buda disse que sofrimento é uma Nobre Verdade. É algo nobre. E temos tanto medo de sofrer, estamos desejando tanto ser feliz, porque não nos conhecemos, desconhecemos nossa alegria, desconhecemos nossa tristeza. Temos somente idéias sobre elas, não as conhecemos realmente. Você apenas tem idéias sobre si mesmo; você não se conhece realmente. Você pode dizer que infelicidade, sofrimento, é também um tipo de felicidade, pois tem a capacidade de lhe ensinar, de lhe ajudar a compreender o verdadeiro valor da vida, o verdadeiro valor da felicidade, o verdadeiro valor do amor, o verdadeiro valor da paciência, o seu verdadeiro valor. Se não consegue sentar-se com o seu sofrimento, você ainda não conhece a si mesmo. Você não sabe quem você é. Você não sabe quem você é. Você ainda não compreendeu a primeira Nobre Verdade ensinada por Buda, nosso professor.

Eu gostaria de desenhar nossa mente [Desenha um círculo] Esta é a nossa mente. Sabemos que a nossa mente tem, pelo menos, dois níveis. [Ele divide o círculo em dois níveis: superior e inferior] Então sua mente tem dois níveis. Um nível é o nível das manifestações e um nível nós o chamamos de nível raiz ou consciência raiz, mulavijñana, a consciência raiz. E neste nível, você tem muitos tipos de sementes. A semente da raiva, a semente do amor, a semente da depressão, a semente da esperança, a semente da alegria, a semente das mágoas, a semente da felicidade - felicidade é uma semente - a semente da infelicidade, a semente da dúvida. Isto é o seu eu. Você tem tudo. Você tem tudo.

E de tempos em tempos a semente se manifesta neste nível como uma flor, como por exemplo, o sentimento de alegria. O amor pode se manifestar. A raiva pode se manifestar. Praticar é ser capaz de reconhecer estas manifestações, que as chamamos de formações mentais... Quando um sentimento feliz está presente no nível superior o chamamos de formação mental. Quando retorna, o chamamos de semente.

Onde você pode se encontrar? Você pode se encontrar nas suas formações mentais. O erro que cometemos é pensar “eu conheço minhas formações mentais”, “eu conheço minha raiva”. De fato, sua raiva quando está se manifestando no nível superior é sempre uma nova manifestação. Não se esqueça disto. Algumas pessoas dizem “nunca mais vou ficar com raiva; agora estou praticando muito bem e nunca mais ficarei com raiva”. Eu penso que estas pessoas não são boas praticantes. Não acho que sejam bons praticantes. É melhor dizer “toda vez que a minha raiva está se manifestando eu consigo reconhecê-la”. É muito melhor! Soa muito melhor, porque você não vive em ignorância.

Não pense que raiva é algo negativo. Quando a pessoa diz “nunca mais ficarei enervado”, isso mostra que àquela pessoa acredita que a raiva é algo negativo. “Eu pratico tão bem, então sorrio todo dia, sou muito feliz. Nunca estou furioso, portanto sou um bom praticante.” Isto é uma idéia que você tem de si mesmo. O seu eu não é assim. Você é uma manifestação, e sua raiva é uma manifestação. Sua raiva só é destrutiva, só é perigosa quando você não a enxerga. Ela só consegue ser destrutiva quando você não compreende sua raiva e não se compreende. Você não enxerga sua raiva porque você não se aceita, não se conhece. Você não tem compreensão de si mesmo. Você quer excluir a raiva de dentro de si.

Desta forma, você não quer que aquilo esteja ali. [Ele apaga o desenho da flor representando a raiva] Mas o que você desconhece é que ela está sempre lá embaixo, quer você queira ou não. Ela sempre está lá na sua consciência raiz, você não consegue excluí-la do nível da consciência raiz. Normalmente as pessoas, não praticantes, pensam em si mesmas como sendo apenas este nível [o superior] e fazem uma discriminação: “Ok, eu quero amor, quero esperança; eu não quero raiva, depressão.” Elas excluem a outra metade delas mesmas. Porque pensam “isto sou eu, e quero excluir o que é negativo e manter o que é positivo.”

Então, mesmo que seu amigo diga “você está furiosa”, você diz “não estou furiosa”, porque não quer aceitar aquilo. Pois acredita que consegue excluir a raiva. O fato, a verdade é que você não consegue excluí-la. Você pode ignorar a manifestação, mas não consegue excluí-la. E se você ignora uma manifestação, isto não é inteligente. Não é inteligente. Quando você ignora uma manifestação, ignora a si mesmo, e vive em ignorância. Você não se vê. Você também está se discriminando. É muito doloroso discriminar-se. Você sabe o quão doloroso é quando as pessoas lhe discriminam? Mas a dor mais profunda ocorre quando você discrimina a si mesmo.

Esta é a sua maior dor. Este é o seu maior sofrimento, quando discrimina a si mesmo. Fazemos isto por acreditar que podemos excluir as manifestações. Isto não é verdade. Você não quer olhar para ela, mas ela ainda está lá. Você não quer que se manifeste, mas ela continua se manifestando - quer você queira ou não, ela continua se manifestando, pois esta lá como semente na consciência raiz.

Portanto, o primeiro erro que cometemos é discriminarmos nós mesmos, por acreditar que somos apenas a consciência manifesta. Somos mais do que a consciência manifesta. Somos também a consciência raiz. Quando você cuida bem da flor, você cuida bem da terra. Quando você cuida bem da terra, você cuida bem da flor. Quando a raiva está se manifestando ela está lhe dizendo algo. Cuidar bem da sua raiva, cuidar bem da flor é remover a sua tendência de discriminar a si mesmo.

E você aceita e diz: “estou furioso e sofro; o sofrimento está se manifestando”. Sentimento desagradável e alegre está se manifestando com sua raiva... tudo bem, estar ali... e, ao mesmo tempo, com a sua raiva. E você consegue reconhecer sua raiva e consegue reconhecer seu sentimento de infelicidade. Não pense que você já se conhece. Não pense isto. Você reconhece isto e aprende a compreendê-lo. A primeira Nobre Verdade é sofrimento, e não pense que é negativa, porque é uma Nobre Verdade. Se fosse negativa como poderia ser chamada de “nobre”?

A segunda Nobre Verdade costumávamos dizer que é a causa do sofrimento, a causa do seu sofrimento. Eu gostaria de chamar a segunda Nobre Verdade “a raiz do sofrimento”; a raiz. Estudando a primeira Nobre Verdade, reconhecendo, aceitando, aprendendo com a raiva, você consegue ver a raiz; e pode entender seu sofrimento. Você consegue compreendê-lo. O primeiro passo, portanto, é reconhecer. O segundo passo é compreender. Quando você reconhece algo tem a chance de compreender aquilo. Você pode entender muitas coisas a partir da sua raiva. Pode ver que ela tem suas raízes lá em baixo. Assim você pára de se culpar. É apenas uma manifestação. Isso é tudo. E mais ainda: é uma bela manifestação.

Sentimento de infelicidade é apenas uma manifestação. É só isso. Mas, além disso, é uma linda manifestação. O que nós também podemos compreender estudando as manifestações e suas raízes é que a discriminação entre muitos tipos de energias só é possível no nível superior; não é possível no nível inferior, no nível raiz. No nível raiz você não consegue distinguir as coisas nitidamente assim, de forma imediata, como está desenhado. Quando cuidamos bem do sentimento de infelicidade, e quando este retorna ao nível raiz, ele tem a capacidade de nutrir o sentimento feliz e retornar de novo na forma de sentimento feliz.

O erro que cometemos é acreditar que quando a energia da raiva está se manifestando e volta a ser semente, ela fica como semente de raiva para sempre. Este é um erro que costumamos cometer – algo do tipo. Isto é produto da nossa discriminação. Neste nível [inferior] as coisas trabalham juntas. Apóiam-se mutuamente. Quando você cuida bem da sua raiva, está cuidando bem também do seu amor. A partir da sua raiva você pode aprofundar o seu amor. Então neste nível, no nível raiz, com compreensão, você vê as coisas trabalhando umas com as outras. Raiva e amor se apóiam, eles trabalham um para o outro. Cuidar bem da sua infelicidade também é cuidar bem da sua felicidade.

Então não é inteligente ignorar o que você chama de manifestações negativas. Se ignorar sua raiva, você se ignora. Se ignorar a sua raiva você ignora o seu amor. Então, onde você pode se achar? Você pode se encontrar na sua consciência, na sua consciência raiz. Você é como uma mãe que consegue abraçar todos os filhos dela, e olha para a manifestação no momento em que ela vem da consciência raiz. É uma manifestação que vem da sua consciência raiz. Mesmo que seja sua raiva, que seja o seu sofrimento, ela é ainda uma manifestação da minha consciência raiz. Ainda sou eu.

Onde você pode se encontrar? Você pode se encontrar na sua consciência raiz. Na consciência raiz você é extremamente rico. Você é muito encantador. [Sino] Se você se conhece, sente-se em casa consigo mesmo, dentro de si. Sentindo-se em casa, você não mais buscará por outra coisa externa que você não tem, porque na consciência raiz você é a Mãe Terra. Você tem tudo. E de tempos em tempos a Mãe Terra lhe oferece lindas manifestações.

Você é uma linda manifestação. Toda manhã, ao se acordar, não se esqueça de se olhar no espelho para se deleitar consigo mesmo. Você é uma linda manifestação. Você continua manifesto até o último instante da sua vida. Todo instante é uma linda manifestação. Mesmo se tiver algum sofrimento, você continua sendo uma linda manifestação da consciência raiz. Todos os seus filhos são lindas manifestações suas. Se você ouve a minha palestra de Dharma e olha mais profundamente, vê que esta é uma nova manifestação de Thây e é uma manifestação totalmente nova. É uma manifestação totalmente nova. Não é a mesma, mas vem da raiz. E você também é uma manifestação de Thây.

Você tem tudo dentro de si. Tudo o que você reconhece em Thây pode reconhecer em você. Isto significa se encontrar na consciência raiz. E nunca pense “somente Thây tem isso, eu não tenho”. Porque pratico, sei que também tenho, e sei que meus irmãos e irmãs também têm. As manifestações deles são apenas outras formas de manifestações. Mas esta é a beleza da vida. Você é uma linda manifestação. Todo dia você se torna uma pessoa inteiramente nova. Aprenda a se conhecer, volte para dentro de si e se descubra, descubra o seu verdadeiro lar, descubra o paraíso dentro de si. Existe um paraíso dentro de você. Mesmo se você encontrar a manifestação do sofrimento, da raiva, este ainda é um paraíso.

De fato, um paraíso só é paraíso quando tem sofrimento, infelicidade e raiva dentro dele. Pare de se discriminar. Esta é a dor mais profunda que você pode experimentar: discriminar-se. Discriminação contra si mesmo é a base para você discriminar outras pessoas. No momento em que você para de discriminar-se, neste momento você para de discriminar as outras pessoas que realmente lhe entristecem. Existe um lar verdadeiro dentro de você, um lar verdadeiro. Feche todas as outras portas. Praticar é deixar só uma porta aberta: a porta que lhe ajuda a voltar-se para dentro de si, para se conhecer.

Você experimenta um tipo profundo de felicidade dentro de si. E ninguém pode fazer isto por você, só você pode. Ninguém pode ajudá-lo a atingir a iluminação. A iluminação precisa ser realizada por você. “Ser iluminado” significa saber quem você é; saber o seu verdadeiro valor. Ser iluminado também significa saber o valor das pessoas que vivem conosco, saber o valor da vida, ver a beleza da vida. Isto é ser iluminado: ver a beleza da vida. Ver quão bela a vida é. A vida é bela para nós desfrutarmos cada instante, em tempos bons e também em tempos ruins. Abra somente uma porta. Feche todas as demais. Abra somente uma porta, a porta que lhe guia no caminho de descobrir quem você é; até você encontrar um lar verdadeiro dentro de si, onde você possa se sentir em casa. Existe um lindo lar, um lar maravilhoso dentro de você esperando que você retorne para desfrutá-lo. Mas só você pode fazer isto. Às vezes você não precisa de nenhuma técnica. Volte para descobrir quão belo, quão maravilhoso você é. Este é o nosso convite. Obrigado.

(palestra proferida pelo Mestre Pháp Dung, no dia 18 de dezembro de 2008 em Upper Hamlet, Plum Village)
(Traduzido por Maria Goretti)

Os Cinco Poderes Espirituais

Os Cinco Poderes Espirituais

O que a maioria das pessoas chama poder, os budistas chamam desejos. Os cinco desejos são a riqueza, fama, sexo, comida refinada, e muito sono. No Budismo, nós falamos dos cinco verdadeiros poderes, cinco tipos de energia. Os cinco poderes são fé, diligência, plena consciência, concentração e insight. Os cinco poderes são a fundação da real felicidade; eles estão baseados em práticas concretas que nós aprenderemos.

O poder da fé

A primeira fonte de energia é a fé. Quando você tem a energia da fé em você, você é forte. No Evangelho, Jesus disse que as pessoas com fé podem mover montanhas. Mas a palavra fé é mais bem traduzida como "confiança" e "crença," porque é sobre algo dentro de você e não dirigido para algo externo. O Patriarca Zen Lin Chi dizia a seus alunos: "Você que não têm bastante confiança em si mesmo, vai em busca destas coisas fora. Você precisa ter confiança que tem a capacidade para se tornar um Buda, a capacidade de transformação e cura."

Fé é ter um caminho que o conduz à liberdade, liberação e a transformação das aflições. Se você viu o caminho, se você tem um caminho para ir, você tem poder. Aqueles que não têm nenhum caminho para percorrer, sofrem. Eles não sabem aonde ir. Você estava procurando um caminho, e agora achou; você viu o modo.

Se você tiver um pouco de experiência que este caminho conduz em uma boa direção, terá fé nele. Você está muito feliz que tem um caminho, e assim começa a ter poder. Este poder não destruirá as outras pessoas ao seu redor. Na realidade, lhe dá força e energia que outras pessoas podem sentir. Quando você tiver fé, seus olhos serão luminosos e seus passos serão confiantes. Isto é poder. Você pode gerar este tipo de poder a todo momento de sua vida diária. Isto te trará muita felicidade.

Se você usa um método de prática e o acha eficiente, e se ele te trouxer plena atenção, concentração e alegria, então a fé e confiança nascerão disto, e não de algo que outras pessoas lhe falam. Isto é fé e confiança não apenas em idéias, mas nos resultados concretos de sua prática. Quando você é bem sucedido na prática da respiração atenta, você se sente claro, sólido, livre. A confiança nasce deste tipo de experiência. Isto não é nenhuma superstição. Não estará confiando em alguém fora de você. A energia da fé pode te trazer muita felicidade. Se você não tiver fé, se não tiver esta energia de confiança, você sofrerá.

Se olharmos cuidadosamente, poderemos ver que a energia de despertar, compaixão, e entendimento já estão lá dentro de nós. Ao reconhecer estas energias como uma parte inerente de seu próprio ser, você passa a ter confiança nelas. E se souber praticar, pode gerar estas energias para se proteger e ter sucesso no que quiser fazer.

O poder da Diligência

O segundo tipo de poder é a diligência. Você é capaz de voltar ao seu melhor e mais alto eu, mas você tem que manter esta prática. Não se permita ficar distraído e esquecer de praticar. Pratique regularmente, diariamente, com o apoio de sua família, amigos e comunidade - isto é diligência. Se você pratica a meditação sentada diariamente, a meditação andando diariamente, a respiração atenta diariamente, o comer atento diariamente, sua prática é nutrida, continuamente, firmemente, e esta é a segunda fonte de poder. Você pode praticar plena consciência, mas sua motivação não é provar que você pode fazer isto. O ponto não é se provar. O ponto é praticar para seu bem-estar e prazer. Você simplesmente pratica, e você faz isto diariamente.

Há quatro aspectos de diligência. O primeiro é que quando as emoções negativas não manifestaram em sua mente, você não lhes dá uma chance para manifestar. Na psicologia budista, nós descrevemos nossa consciência como tendo duas camadas, dois níveis. A mais baixa camada é chamada de consciência armazenadora, e a camada superior é chamada de consciência mental. Consciência mental é nossa mente normal consciente, enquanto a consciência armazenadora é nossa mente inconsciente.

A consciência armazenadora é como a terra, o chão, com muitas sementes preservadas nela. Em nossa consciência armazenadora há sementes de alegria, perdão, plena consciência, concentração, insight, e equanimidade. Mas também há sementes de raiva, ódio, desespero e assim por diante. Todas estas sementes são mantidas por nossa consciência armazenadora. Um das funções da consciência armazenadora é manter estas sementes.

Quando uma semente é regada em nossa consciência armazenadora, ela se manifesta como uma energia em nossa consciência mental e se torna uma formação mental. Você tem uma semente de raiva, mas enquanto ela estiver adormecida, dormente em sua consciência armazenadora, você não se sente bravo. Porém, quando a semente é tocada, quando é ligada, se torna uma formação mental chamada raiva, e você sente a energia de raiva surgindo. Nós podemos visualizar a consciência mental como uma sala de estar e a consciência armazenadora como um porão. Se nós regarmos uma semente de alegria, ela se manifestará no nível superior, na consciência mental, fazendo a sala de estar ficar bonita. Se regarmos a semente de raiva ou ódio, isto fará a sala de estar de nossa mente um inferno para nós e nossos familiares.

Todos temos uma semente de raiva, uma semente de desespero, e uma semente de ciúme em nós. Se você vive em um ambiente negativo, o ambiente pode ativar estas sementes. Se você vive em um ambiente positivo, então as sementes de desejo, violência, ódio, e raiva, não são tocadas, não regadas facilmente. Assim é sábio que você escolha um ambiente bom que prevenirá que estas sementes negativas sejam tocadas freqüentemente. Você não deveria permitir que pessoas ao seu redor tocassem estas sementes, e você não deveria se permitir as regar.

Quando você lê um artigo cheio de violência ou assiste a um programa de televisão ou filme violento, você liga a semente de violência. O primeiro passo da diligência é não ligar estas sementes negativas e não permitir que o ambiente as ligue. Diligência aqui significa a prática do regar seletivo. Assim se as sementes negativas na consciência armazenadora não se manifestaram, mantenha-as lá, não as deixe serem regadas. Em sua vida diária, tenha cuidado para não dar para a estas sementes uma chance para se manifestarem. Não as reprima; só não lhes dê uma chance. Em sua comunidade, em sua família, se exponha só a sons e visões que o ajudarão a tocar os elementos saudáveis dentro de você. Tente não se expor a visões e sons que estimulem a semente de desejo ou a semente de raiva em você. Você precisa de diligência para praticar isto, e você pode precisar de uma comunidade ou grupo de amigos com valores semelhantes para lhe ajudar a criar um ambiente bom. Você pode encorajar que seu parceiro, seus filhos, e seus amigos lhe ajudem a se proteger. E você também pode os proteger criando um ambiente onde eles não têm que estar em contato com coisas que reguem as sementes negativas deles.

O segundo aspecto de diligência é acalmar e substituir as sementes negativas que se manifestam em sua mente consciente. Quando uma semente negativa é ativada - a semente de desespero, a semente de raiva, ou a semente de violência - você precisa saber como ajudá-la a deixar de se manifestar e voltar a sua forma original como uma semente. Não a deixe ficar muito tempo no nível superior da consciência, porque se ficar muito tempo, crescerá mais forte e causará muita destruição. Há muitos modos para acalmar uma energia negativa sem reprimir ou lutar contra ela. Você a reconhece, você sorri para ela, e você convida algo mais agradável a surgir e substituí-la; você lê algumas palavras inspiradoras, você escuta um trecho de música bonita, você vai em algum lugar na natureza, ou você faz um pouco de meditação andando.

É como você colocar o CD errado, e tocar uma música que você não gosta, então você o substitui por outro. Quando o CD novo começa, é muito agradável. O Buda não tinha CDs no tempo dele, assim ele usou a imagem de mudar uma cavilha. Um carpinteiro usa uma cavilha de madeira para prender dois pedaços de madeira. Quando a cavilha estiver podre, não pode unir os dois pedaços, assim ele remove a velha e a substitui por uma cavilha nova. Da mesma maneira, você pode mudar seu pensamento se for desagradável. Se uma idéia é negativa, cheio de desejo ou raiva, você pode usar a respiração atenta para tocar uma semente que é saudável e convidá-la a surgir. Se esta semente saudável for bastante interessante, a semente desagradável secará. Mas a semente nova deve ser mais atraente senão a semente desagradável não irá facilmente e lutará pela sua atenção. Com habilidade, com diligência, você pratica o segundo passo para mudar a situação, ao ajudar a formação mental negativa a voltar a dormir e ajudando a manifestação da semente positiva. Quando a formação mental positiva surgir, a sala de estar estará ocupada e há pouca chance de convidados negativos se intrometerem.

Os primeiros dois aspectos de diligência se referem a ter cuidado com as sementes negativas, o terceiro e quarto, em nutrir as sementes positivas. O terceiro aspecto de diligência é sempre convidar sementes boas a se manifestar. Você sabe que você tem uma semente de amor, uma semente de perdão, uma semente de alegria, de paz, de felicidade. Aprenda modos para tocá-las e ajudá-las a se manifestar. Se você vive em um ambiente bom onde você é apoiado por uma comunidade amorosa e saudável, tem muitas oportunidades para ajudar estas sementes positivas a se manifestarem.

As sementes de despertar, entendimento, e compaixão sempre estão em nós. Elas fazem parte de nossa natureza inerente. A pergunta é como ajudar estas sementes a se manifestarem. Se sementes saudáveis e positivas na consciência armazenadora não se manifestaram, lhes ajude a se manifestar. Leia algo, diga algo, assista algo que regará a semente de compaixão, de bondade, assim elas se manifestarão em sua mente. Organize sua vida de tal modo que as sementes boas em você possam ser tocadas várias vezes por dia, assim elas podem se manifestar no nível de consciência mental. Isto pode ser feito depressa. Chame um convidado maravilhoso a estar freqüentemente na sala de estar, e isto mudará a situação inteira.

O quarto aspecto de diligência é tentar manter uma formação mental boa na sala de estar o mais possível. Nós temos que nutri-las, mantê-las na nossa mente. Se uma semente de compaixão, uma semente de alegria, ou uma semente de paz esta se manifestando como uma formação mental, é bom para você, assim a mantenha lá, e a convide para ficar, não a deixe voltar ao porão. Quando você tem um amigo adorável o visitando, você o convida a ficar o mais possível, porque a presença dele te traz muita alegria. É tão agradável ter um bom amigo que se sente com você na sua sala de estar. Se estiver chovendo, você poderia dizer, "Meu querido amigo, está chovendo lá fora, por isso fique e tome outra xícara de chá." Você tenta persuadir seu bom amigo a ficar o mais possível. Quanto mais tempo a formação mental ficar no nível da consciência mental, mais forte crescerá na base. Isto se aplica ao positivo como também ao negativo. Se você mantém o desejo na sua sala de estar por cinco minutos, a semente de desejo tem cinco minutos para crescer. Ajude a semente de desejo a voltar o mais cedo possível para o porão, e ao contrário, convide uma semente benéfica para ficar.

Quando você usar sua habilidade e estas práticas para criar plena consciência, isto é chamado verdadeira diligência. Verdadeira diligência pode trazer muita alegria, muita felicidade para você e seus familiares. Pessoas com a energia de diligência são extraordinariamente poderosas. Eles podem se transformar; podem ajudar transformar a comunidade, o ambiente, e o mundo.

O poder de Plena Consciência

O terceiro poder é o poder de plena consciência. Plena consciência é a energia de estar atento ao que está acontecendo no momento presente. Quando nós temos a energia de plena consciência em nós, estamos completamente presentes, estamos completamente vivos, e viveremos todo momento de nossa vida diária profundamente. Se você está cozinhando, lavando, limpando, sentando ou comendo, é um tempo para você gerar a energia de plena consciência. E a energia de plena consciência te ajuda a saber o que você deveria fazer e o que você não deveria fazer. Te ajuda a evitar dificuldades e enganos; o protege e joga luz em todas suas atividades diárias.

Plena consciência é a capacidade para reconhecer as coisas como elas são. Quando você está atento, reconhece o que está acontecendo no aqui e agora. Quando reconhecer algo positivo, pode desfrutar disto; pode se nutrir e pode se curar apenas reconhecendo estes elementos positivos. E quando algo for negativo, a plena consciência lhe ajuda a abraçar, acalmar, e adquirir um pouco de alívio. Plena consciência é uma energia que pode abraçar o sofrimento, a raiva, o desespero. Se souber abraçar seu sofrimento bastante tempo, você adquire alívio.

Se perdermos este poder de plena consciência, perdemos tudo. Sem plena consciência, fazemos e gastamos nosso dinheiro de modos que nos destroem e também às outras pessoas. Usamos nossa fama de tal modo que nos destruímos e aos outros. Usamos nossa força militar para destruir a nós mesmos e às outras pessoas.

Caminhar e comer são ações que executamos diariamente. Mas normalmente quando caminhamos, realmente não estamos caminhando. Nós estamos sendo levados por nossos projetos e preocupações. Não somos livres. Quando nós caminhamos com plena consciência, morando no momento presente, já não somos mais empurrados por nossos pesares sobre o passado ou nossas preocupações relativas ao futuro, tocamos as maravilhas da vida e cada passo nutre nossa felicidade. Com plena consciência não temos que lamentar o modo como vivemos. Plena consciência nos ajuda a ver e estar em contato com nossos familiares. É a energia que nos permite voltar a nós mesmos, estar vivos e verdadeiramente felizes.

O poder da Concentração

A plena consciência provoca o quarto poder, o poder da concentração. Quando você beber seu chá, apenas beba seu chá. Desfrute seu chá. Por favor não beba seu sofrimento, seu desespero, seus projetos. Isto é muito importante. Caso contrário você não poderá se nutrir.

Há coisas que você viu, mas não muito claramente. Você pode usar o poder da concentração para experimentar um progresso e ver a natureza do que está lá profundamente. Talvez você tenha alguma dificuldade, depressão, medo ou desespero e queira olhar profundamente a natureza de sua aflição para poder transformá-la. Para fazer isto você precisa de muita concentração.

Concentração pode nos ajudar a olhar profundamente a natureza da realidade e pode provocar o tipo de insight que pode nos liberar do sofrimento. Há muitos tipos de concentração que nós podemos cultivar. Através da concentração na impermanência, nós nos damos conta que tudo constantemente está mudando. Nós podemos morrer amanhã ou a qualquer hora por causa de um acidente. Nós deveríamos fazer tudo o que podemos para fazer nossos familiares felizes hoje. Amanhã pode ser muito tarde.

Com concentração no não eu - a realidade que nós não temos um eu separado - nos damos conta que o sofrimento não está só em nós, mas também na outra pessoa. Não só nós sofremos, mas também nossos filhos, nossos parceiros, nossos amigos e nossos colegas. Quando desenvolvemos concentração em interser, na interconexão de todas as coisas, vemos que se nós os fizermos sofrer eles nos farão sofrer de volta. Concentração na natureza da impermanência, não eu, e interser podem nos ajudar a realizar grandes avanços que trarão o quinto tipo de poder para nós, insight.

O poder do Insight

Insight, o quinto poder, é uma espada que sem dor corta todos os tipos de sofrimento, inclusive o medo, o desespero, a raiva, e a discriminação. Se você estiver usando seus poderes de concentração, o insight lhe permite ver no que você está concentrando completamente. Concentração em impermanência e não eu conduz ao insight de impermanência e não eu.

Impermanência não é uma idéia, não uma noção, mas um insight. Muitos de nós tentamos nos agarrar a alguma noção de estabilidade ou permanência desesperadamente. Ficamos ansiosos quando ouvirmos o ensinamento da impermanência. Mas impermanência não é apenas negativa; impermanência pode ser muito positiva. Tudo é impermanente, inclusive a injustiça, a pobreza, a poluição e o efeito estufa. Em nossas vidas, há mal entendidos, há violência, há conflito, há desespero, mas estas coisas também são impermanentes, e porque são impermanentes é que podem ser transformadas se nós tivermos insight em como viver no momento presente.

Porém, às vezes nos esquecemos da impermanência. Embora intelectualmente percebamos que tudo é impermanente, nos esquecemos naquele dia que nossos familiares adoecerão e morrerão. Não nos lembramos que nós mesmos temos que morrer algum dia. Temos uma tendência a pensar que sempre viveremos. E mesmo que não tenhamos o insight, precisamos viver lindamente e realmente apreciando nossos familiares. Para muitos de nós, a dor intensa que sentimos com a morte de um ente querido não é totalmente porque sentimos a falta dele. Ela existe em maior parte porque lamentamos que, enquanto nosso amado estava vivo, não tivemos tempo para ele, não cuidamos dele de todo coração. Nós podemos tê-lo tratado indelicadamente. E agora que nosso amado se foi, nos sentimos culpados. Se nós tivermos o insight da impermanência, saberemos que nosso amado morrerá um dia e que temos que fazer tudo que pudermos para fazê-lo feliz hoje. Não espere por amanhã. Amanhã pode ser muito tarde. Se nós soubermos viver de acordo com o insight da impermanência, não cometeremos muitos erros. Nós poderemos ficar felizes agora mesmo. Nós poderemos amar nossos entes queridos, cuidar deles e fazê-los felizes hoje. E não correremos para o futuro, perdendo nossa vida que só está disponível no momento presente.

Quando o Buda falou sobre impermanência, ele estava falando de insight. Ele não estava sendo pessimista, mas só nos lembrando que a vida é preciosa, que temos que entesourar todo momento de vida. Concentrando deste modo na impermanência, nos trará o insight da impermanência. Com este tipo de insight, não nos permitimos levar pelo desespero, raiva, ou negatividade, porque nosso insight nos diz exatamente o que fazer e o que não fazer para mudar a situação. Com impermanência, tudo é possível.

Sem insight, nós pensamos em poder como algo que ganhamos para nós mesmos e para nós mesmos sozinhos. Mas outro insight que nós podemos cultivar é o insight de não-eu. Não-eu não quer dizer que você não existe, significa você não é uma entidade completamente separada. Muito do nosso sofrimento nasce da discriminação entre eu e o outro e nossa noção de um eu separado.

Suponha que você seja um pai. Olhando seu filho, você verá que ele é sua continuação. Da mesma maneira que uma planta de milho é a continuação de um núcleo de milho, a criança é uma continuação do pai. O pai está lá em toda célula do filho. Pai e filho não são exatamente uma pessoa, mas eles não são exatamente duas pessoas diferentes. Se o pai pode ver isto, ele toca a natureza do não-eu. Se o filho sofre, o pai sofre, e vice-versa. Ficar bravo com seu filho é ficar bravo com você mesmo. Ficar bravo com seu pai é ficar bravo com você mesmo. Isto é muito claro. Quando você puder tocar sua natureza de não-eu, quando já não vir uma distinção entre você e seu filho, sua raiva desaparecerá. Quando você estiver em uma luta de poder, se você souber meditar no não-eu, saberá o que fazer. Você pode parar seu próprio sofrimento e o sofrimento das outras pessoas que estão na luta. Você sabe que a raiva dele é sua raiva, o sofrimento dele é o seu sofrimento, e a felicidade dele é a sua felicidade.

Quando meu braço esquerdo dói por causa do reumatismo, eu tento tomar conta dele: eu faço massagem nele e tudo o mais para trazer alívio a meu braço esquerdo. Eu não fico bravo com meu braço esquerdo. Quando tenho um estudante que sofre, que está em dificuldade, tento praticar assim. Eu não fico bravo com ele. Tento tomar conta dele como se tomasse conta de meu próprio braço; porque ficando bravo com meu estudante estaria ficando bravo comigo e não ajudaria a situação. Mas nós só podemos agir com este tipo de sabedoria depois que alcançarmos o insight de não-eu.

No Budismo há um tipo de sabedoria chamado a sabedoria da não discriminação. Não discriminação é um elemento do verdadeiro amor. Eu sou destro, assim eu faço a maioria das coisas com minha mão direita: escovo meus dentes, convido o sino a soar, escrevo caligrafia. Eu escrevi todos os meus poemas com a minha mão direita. Mas a minha mão direita nunca está orgulhosa de si mesma. Nunca diz, “Mão esquerda, você não é boa para nada! Eu tenho que fazer tudo sozinha." E minha mão esquerda não tem um complexo de inferioridade. Nunca sofre, é maravilhoso. A mão direita e a mão esquerda sempre estão em paz entre si. Elas colaboram de um modo perfeito. Esta é a sabedoria do não-eu que está viva em nós.

Um dia eu estava martelando um prego na parede para pendurar um quadro. Eu não estava muito hábil, e em vez de bater no prego, bati no meu dedo. Imediatamente, minha mão direita largou o martelo e tomou conta de minha mão esquerda. A minha mão direita nunca disse: "Mão esquerda, você sabe, eu estou tomando conta de você. Você deveria se lembrar disso." E minha mão esquerda não disse: "Mão direita, você me fez sofrer. Eu quero justiça, me dê aquele martelo!" Minha mão esquerda nunca pensa assim. Assim a sabedoria de não discriminação está lá em nós. E se nós fizermos uso disto, haverá paz em nossa família, em nossa comunidade.

Se os hindus e muçulmanos da Índia usassem a sua sabedoria de não discriminação, haveria paz. Se os israelitas e palestinos perceberem a sabedoria de não discriminação, não haverá mais guerra. Se os americanos e iraquianos vissem que são irmãos e irmãs, duas mãos do mesmo corpo, eles não continuariam se matando uns aos outros. Todos nós precisamos cultivar este tipo de sabedoria. Com este insight, podemos nos desfazer do nosso próprio medo, sofrimento, separação, e solidão, e podemos ajudar os outros a fazerem o mesmo.

Insight vem do entendimento. Podem já haver elementos de entendimento em nós, mas se não tivermos tempo para estarmos atentos e concentrados, o insight não se manifestará em nós. Precisamos criar o tipo de ambiente onde a plena consciência e a concentração fiquem fáceis. É como preparar a terra de forma que a flor que plantamos possa brotar. Insight é o tipo de entendimento que se obtém depois que você está atento. Se você se permitir se perder em lamentações sobre o passado e preocupações sobre o futuro, é difícil o insight crescer e será mais difícil de saber qual a ação certa para tomar no presente.

É por causa da ignorância que nós sofremos. Quando começarmos a tocar o insight, estaremos profundamente em contato com realidade e não há mais qualquer medo. Há compaixão. Há aceitação. Há tolerância. É por isto que nós falamos sobre insight como um tipo de super-poder. Se você tomar algum tempo para olhar para realidade usando os insights de impermanência e não-eu, terá um progresso que o liberará de seu sofrimento e suas dificuldades. Todos os primeiros quatro poderes conduzem a este quinto super-poder. E com o insight vem uma tremenda fonte de felicidade.

(Traduzido Do livro The art of power – Thich Nhat Hanh)
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sexta-feira, 19 de março de 2010

A Mente

A Essência, a Natureza e as Características da Mente



Dagpo Tashi Wangyal


A essência da mente

Apesar da natureza da mente ter geralmente sido designada por estes três termos - nominalmente, essência, natureza e características -, elas em realidade não são diferentes da essência da mente. O Amnayamanjari afirma:

A vacuidade constitui a natureza intrínseca de todas as coisas [mentais e materiais]. A essência dessa vacuidade não é diferente do que foi designado como a própria natureza da mente e seu modo de se manifestar. Entretanto, do ponto de vista do [aspecto mental], ela pode ser dividida em três: essência, natureza e características, que são identificadas de acordo [com seus aspectos].

Quanto a isto o venerado Gampopa escreveu:

A essência da mente consiste de três aspectos: essência, natureza e características. Sua essência consiste do estado de claridade e não-concepção, sua natureza é vazia de qualquer modo substantivo de surgimento, permanência e cessação, e suas características referem-se às aparências dualistas da existência cíclica [samsara] e da paz permanente [nirvana].

Novamente ele comenta:

A mente consiste de natureza, essência e características. O termo designado "natureza da mente" significa que em sua natureza intrínseca ela é pura e não-criada, e assim abarca todos os reinos do samsara e do nirvana. O termo "essência" significa o estado desperto mais interno, que é desapegado do surgimento e da cessação. O termo "características" significa as diversas aparências de imagens surgidas das marcas psíquicas condicionadas.

Je P'hagmodrupa conclui:

Mahamudra significa [estado desperto] não-dual.
Seus três aspectos são a essência, a natureza e as características.
"Essência" significa a vacuidade do surgimento, cessação ou concepção.
"Natureza" significa lucidez não-obstruída.
"Características" significa as diversas aparências. Nos níveis do samsara e do nirvana.

A essência e a natureza da mente são afirmadas como sendo idênticas em realidade. O aspecto da mente é idêntico com suas características. Isto é afirmado por Je Rangjungpa [Karmapa III]:

A essência [da mente] é vazia, sua própria natureza é lúcida
E seu aspecto consiste de aparências diversas e incessantes.

A essência da mente é, desde o início, vazia de qualquer surgimento, permanência ou cessação substantivos. Não é maculada por conceitos dualistas dos agregados psicofísicos da vida, pelos elementos e pelas faculdades sensoriais. Ela tem a mesma natureza daqueles fenômenos que são vazios de qualquer essência própria mas são uma igualdade que tudo abarca.

Isto é enfatizado no Guhyasamaja:

É vazia de todas as substâncias
E desapegada das discriminações dualistas
Tais como agregados, elementos e faculdades sensoriais.
É sem eu e igual.
Esta mente é não-nascida desde o início
Porque é vazia por sua natureza inata.

Referindo-se à essência da mente, o Bodhichittavivarana explica:

As mentes iluminadas [bodhi] dos buddhas
Não são nubladas por qualquer visão de dualidades -
O eu e os agregados da vida -
Porque as características destas mentes
São vazias em todos os tempos.

Como afirmado anteriormente, quando olhamos e examinamos completamente a natureza intrínseca da mente, não encontramos qualquer base substantiva. Ao invés disso, experienciamos que o processo analítico está se aquietando ou se apagando. Este estado é descrito como sendo a realidade última, a vacuidade que tudo abarca, que é intrínseca em todas as coisas e em todos os tempos. O Satyadvaya afirma:

A aparente realidade aparece como tal
Mas é [vista como sendo] vazia de qualquer substância
Quando sujeita à investigação lógica completa.
Esta descoberta [da vacuidade] representa a verdade absoluta
Que é inerente em todas as coisas e em todos os tempos.

Essa vacuidade intrínseca da mente é na verdade a vacuidade de todas as coisas, que abarca todas as aparências e existências do samsara e do nirvana. Aryadeva comenta:

Uma substância representa a essência de todas as outras substâncias;
Todas as outras substâncias representam a essência de uma substância.

Aryadeva também diz em seu Chatuhshataka:

A vacuidade de uma coisa
Representa a vacuidade de todas as coisas.

O Satyadvaya declara:

Não há divisão qualquer na vacuidade,
Nem mesmo no menor grau.

A natureza da mente

O Ashtasahasrika Prajnaparamita Sutra ensina:

A natureza da mente consiste da claridade luminosa,
Que é a natureza intrínseca do Tathagata.

Há muitas passagens como esta que descrevem a natureza da mente como sendo uma claridade luminosa. O termo "claridade luminosa" significa que é pura, não-maculada por quaisquer pensamentos discriminadores, tais como surgimento, permanência ou cessação. Não-maculada [por quaisquer máculas mentais] e desapegada das partículas dos agregados, ela permanece imutável por todo o tempo, como o espaço, ou mesmo inseparável da natureza do espaço.

O Upaparipriccha explica:

A mente em sua natureza é pura e luminosa.
É não-substantiva, não-maculada e desapegada de quaisquer partículas subatômicas.

O Uttaratantra diz:

Esta claridade luminosa, sendo a natureza da mente,
É imutável, como o espaço.

O Jnanalokalamkara Sutra elabora:

[Buddha:] Ó Manjushri, a iluminação por sua natureza inata consiste de claridade luminosa, por que a natureza intrínseca da mente é luminosamente clara. Por que ela é assim designada? A natureza intrínseca da mente é desapegada de qualquer mácula interior e é igual, ou possui, a natureza do espaço, enquanto abarca o espaço através de suas características idênticas.Por todas estas razões ela é designada como sendo claridade luminosa.

O Vairochanabhisambodhi observa:

A natureza da mente é pura, porém não pode ser concebida dualistamente como sendo externa, interna ou intermediária.

E novamente diz:

O que quer que seja a natureza do espaço é a natureza da mente. O que quer que seja a natureza da mente é a mente da iluminação. Por esta razão a mente, a expansão do espaço, e a mente da iluminação são não-duais e inseparáveis.

O Guhyasamaja explica:

Já que todas as coisas em sua natureza são luminosamente claras,
Elas são puras desde o início, como o espaço.


Sendo assim, alguns meditadores não-sábios, quando experienciam qualquer tipo de claridade interior, consideram-na como sendo a claridade luminosa da mente e até mesmo a assumem como sendo radiante como a luz solar. Este é um erro muito sério pois, como provado por citações anteriores, o termo "claridade luminosa" tem sido usado para simplesmente significar que a mente é de pureza intrínseca, que não é maculada pelos pensamentos discriminadores ou aflições emocionais. Se a natureza da mente se constituísse de qualquer coisa radiante e colorida, a mente teria de ser uma luz e teria uma cor. Então a doutrina [buddhista] que afirma a natureza da mente como sendo pura, isto é, desapegada de qualquer essência própria, estaria errada.

Bem, então, quando certas experiências nas quais yogis percebem o próprio estado desperto com a própria claridade como se fosse uma manifestação psíquica, uma luz interior que até mesmo ultrapassa as aparências, ou uma cor ou luz normais? Naropa esclarece isto no Drishtisamkshepta:

Todas as coisas da aparência e da existência
Não existem separadas do próprio estado desperto
Pois as coisas aparecem e se cristalizam
Assim como, por exemplo, a mente experiencia
O seu próprio estado desperto.

E novamente ele diz:

Este próprio estado desperto é desapegado da discriminação;
Ele se manifesta enquanto sendo intrinsecamente vazio;
Sendo vazio ele se manifesta.
A aparência e a vacuidade são, portanto, inseparáveis.
Elas são como o reflexo da lua na água.

Tal [experiência dos místicos] é simplesmente o despontar interior da lucidez e estado desperto da mente. Apesar desta experiência interior ser correntemente designada como estado desperto para o objeto prático da contemplação, ela está ainda no nível da dualidade e como tal não pode ser um estado desperto real porque não é a vacuidade suprema de todas as formas, nem o poder que tudo permeia. O grande comentário sobre o Kalachakra [o Vimalaprabha] explica:

O que, então, é o estado desperto? A resposta é que o estado desperto, assim designado, é o estado desperto mais interno de um tipo não-discriminativo. É a vacuidade suprema de todas as formas. Além de ser um estado desperto imutável e extasiante, ele transcende todos os conceitos. Este estado desperto é o mestre da causa e efeito. A causa e efeito estão nele como a luz e calor do fogo.

O Manjushrinama Sangiti descreve o estado desperto:

É o estado desperto que tudo conhece, completo e absoluto.
Como tal ele transcende o reino da consciência.

E novamente diz:

Ele compreende tudo, a si mesmo e os outros.

Por esta razão Je Drikhungpa diz:

O que é conhecido como o grande selo é este estado desperto mais interior.

Todas as formas de estado desperto mostradas aqui como objetos de meditação deveriam ser entendidos à luz destas passagens. Mesmo assim, a percepção interior que os místicos experienciam não pode ser construída para ser o estado desperto discernidor e a lucidez intrínseca da mente. O Samdhinirmochana explica:

O estado desperto discernidor está no estado desperto não-dual.

O Guhyachintya Tantra afirma:

Abandonando o eternalismo e o niilismo,
O surgimento e a cessação, e outras visões extremas,
A mente atinge o estado desperto transcendendor
Que desde o início tem sido desapegado de quaisquer distorções dualistas.
O significado disto está realmente além de uma dimensão conceitual.

Assim o significado de estar desperto [ou de ter insight em] cada aspecto da realidade é afirmado como sendo não-dual e além de uma dimensão conceitual. O significado da lucidez intrínseca da mente foi explicado anteriormente.

As características da mente

A pureza intrínseca da mente foi nublada por uma mácula transitória. A confusão resultante distorceu a consciência de seu estado natural. Através de sua interação com a discriminação fundamental emergiram os seres sencientes das seis esferas existenciais, com sua [capacidade de experienciar] prazer e miséria transientes. Quando as máculas são eliminadas, a natureza intrínseca da mente é realizada e o processo interativo da auto-realização é completado, atinge-se a iluminação da realidade absoluta, para que suas manifestações supremamente ilusórias apareçam para o benefício dos seres sencientes. O Drishtisamkshepta comenta:

Alas, os seis níveis de seres sencientes são
Emanações das mentes deludidas.
Através do reino infinito do espaço
Eles vagam na miséria e delusão inimagináveis.

E novamente este texto aponta:

Lo! Das mentes imaculadas emergem
Emanações em formas sublimes.
Aparecendo como os reinos puros
E como as assembléias iluminadas em suas diversas formas,
Estas emanações maravilhosas
Permeiam o infinito espaço cósmico!

Saraha diz:

A mente sozinha é a semente de todas as realidades
Da qual se desdobram o samsara e o nirvana.

O Samputa explica:

A mente maculada pela paixão e pelos outros impulsos descontrolados
É na verdade a mente da existência cíclica.
Descobrir a lucidez intrínseca da mente é na verdade a liberação.
Não-maculada pela luxúria e impurezas emocionais,
Não-nublada por quaisquer percepções dualistas,
Esta mente superior é na verdade o nirvana supremo!

Se a mente em seu estado natural é pura desde o início, ela não pode eventualmente ser maculada por qualquer impureza transitória. Se isto fosse possível, a mente, após ser purificada da impureza, poderia novamente ser maculada. A impureza da mente tem sido designada como transitória já que pode ser eliminada. Não é algo que subitamente emergiu do nada. De fato, a impureza da mente tem coexistido com a mente desde um tempo sem início. O Uttaratantra explica-a através de uma analogia:

A pureza intrínseca [bodhi] é como o pólen no lótus comum,
Como grãos no debulho e ouro na sujeira,
Como um tesouro sob o solo e sementes nas vagens,
Como uma imagem do Buddha enrolada em trapos,
Como um príncipe no ventre de uma mulher comum,
Como um monte de ouro abaixo da terra.
Assim, a natureza da iluminação permanece escondida em todos os seres sencientes
Que estão dominados pela mácula transitória.

Quanto mais a mente permanece nublada por uma mácula transitória, mesmo que o seu estado intrínseco seja puro, as qualidades da iluminação não se cristalizarão. Elas, entretanto, emergirão espontaneamente com a eliminação da mácula da mente. O Hevajra Tantra afirma isto:

Todos os seres sencientes são buddhas,
Eles apenas estão dominados pela mácula transitória.
Eles se tornam buddhas no momento em que eliminam sua mácula.

Nagarjuna expõe:

Apesar de a preciosa vaidurya ser sempre translúcida,
Se deixada não cortada, ela não brilha.
Assim é a realidade que tudo abarca [dharmadhatu];
Apesar de intrinsecamente imaculada, ela é nublada pela mácula.
Assim permanece latente no samsara
Mas se cristaliza ao se atingir o nirvana.

As características [da mente] são assim descritas como essas que se manifestam nas diversas formas do samsara e do nirvana.

Os místicos do tempo presente experienciam até mesmo as manifestações da mente como sendo uma diversidade indeterminável e não-obstruída. Devido à força de suas diversas tendências não-nascidas, eles percebem as manifestações interiores como realidades externas. Elas aparecem exatamente como designadas ou moduladas pela interação do karma e das tendências não-nascidas dos meditadores. Mesmo que a natureza intrínseca [da mente] não mude, sua manifestação toma muitas formas diversas, como um tecido de lã que é transformado pelo uso de tinturas. O Lankavatara Sutra elucida:

A mente em sua natureza permanece pura e lúcida. Ainda assim ela se manifesta exatamente como o intelecto queira que seja, assim como um tecido de lã branca é transformado pelo uso de tinturas.

A fim de determinar o estado real da mente e o como ele se manifesta em diversas formas, normalmente se estudaria os textos explicativos sobre as oito formas de consciência, incluindo a consciência-fonte e as categorias mentais. Entretanto, dei aqui apenas as informações relevantes.
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(Namgyal, Takpo Tashi. Mahamudra: the quintessence of mind and meditation.

Traduzido e anotado por Lobsang P. Lhalungpa, prefácio de Chögyam Trungpa. Delhi: Motilal Banarsidass, 1993. Pág. 213-220.)

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quinta-feira, 18 de março de 2010

As Seis Perfeições (Paramitas)

As Seis Perfeições (Paramitas)

As seis paramitas são ensinamentos do Budismo Mahayana. Paramita é uma palavra que pode ser traduzida como "perfeição" ou "realização perfeita". O ideograma chinês para este termo significa "atravessar para a outra margem", que é a margem da coragem, da paz e da libertação. As perfeições devem ser praticadas em nossa vida diária. Estamos atualmente na margem do sofrimento, da raiva e da depressão, e queremos atravessar para a margem do bem-estar. Para atravessar, é preciso fazer alguma coisa, e é a isso que chamamos de perfeição. Assim, voltamos para nós mesmos, praticamos a respiração consciente e olhando nosso sofrimento, nossa raiva, nossa depressão, e sorrimos. Ao fazer isso, superamos a dor e atravessamos. Devemos praticar as "perfeições" todos os dias.

Todas as vezes que damos um passo consciente, temos a oportunidade de sair da terra da tristeza para a terra da alegria. A Terra Pura está disponível aqui e agora. O Reino de Deus é uma semente dentro de nós. Se soubermos plantar essa semente em um bom solo, ela se tornará uma árvore, onde os pássaros virão se refugiar. Pratiquem a travessia para a outra margem sempre que sentirem necessidade. O Buda disse: "Não fique esperando que a outra margem venha até você. Se quiser atravessar para chegar à margem da segurança, do bem-estar, da coragem e da ausência de raiva, terá que nadar ou remar. Você precisa fazer um esforço." Esse esforço é a prática das Seis Perfeições.

(1) Dana paramita - Doação, generosidade, oferta.
(2) Shila paramita - Os preceitos ou treinamentos da atenção plena.
(3) Kshanti paramita - Tolerância, a capacidade de acolher, suportar e transformar a dor infligida a você por seus inimigos e também pelas pessoas que o amam.
(4) Virya paramita - O esforço, energia, perseverança.
(5) Dhyana paramita - A meditação.
(6) Prajna paramita - A sabedoria, compreensão, insight.

Praticar as seis perfeições ajuda a atingir a outra margem - a margem da liberdade, da harmonia e dos bons relacionamentos.

A primeira prática da travessia é a perfeição da generosidade (a dana paramita). Dar significa, primeiro, oferecer alegria, felicidade e amor. Existe uma planta, muito conhecida na Ásia - um membro da família das cebolas, que fica deliciosa nas sopas, no arroz frito e nos omeletes - que a cada vez que a cortamos torna a crescer em vinte e quatro horas. E quanto mais se corta essa planta, maior e mais forte ela cresce. A planta representa a dana paramita. Não guardamos nada para nós. Apenas queremos dar. Talvez a outra pessoa se sinta feliz com isso, mas com certeza os maiores beneficiados seremos nós mesmos. Em diversas histórias sobre as vidas passadas de Buda, nós o encontramos praticando a perfeição da generosidade.

A maior dádiva que podemos dar a alguém é nossa presença verdadeira. Um menino que conheço ouviu de seu pai: "O que você quer de aniversário?" O menino hesitou. O pai era rico e podia lhe dar o que pedisse. Mas passava tanto tempo ganhando dinheiro que quase nunca estava com a família. Por isso, o menino respondeu: "Pai, eu quero você!" A mensagem era clara. Se amamos alguém, temos que ofertar nossa presença verdadeira a essa pessoa. Quando damos esse presente, recebemos ao mesmo tempo o presente da alegria. Aprenda a oferecer sua presença verdadeira através da meditação. Inspirando conscientemente, promova a união do corpo e da mente. "Querido, estou aqui para você" é um mantra a ser repetido quando praticar essa perfeição.

O que mais podemos oferecer? Nossa estabilidade. "Inspirando, eu sou uma montanha. Expirando, eu me sinto firme." A pessoa que amamos necessita de que sejamos firmes e estáveis. Podemos cultivar nossa estabilidade através da inspiração e da expiração, da caminhada com atenção plena, da meditação sentada, e também gostando de viver profundamente cada momento. A firmeza é uma das características do Nirvana.

O que mais podemos oferecer? Nossa liberdade. A felicidade não é possível, a menos que estejamos livres de aflições tais como desejo, raiva, ciúme, medo, ou percepções errôneas. A liberdade é uma das características do Nirvana. Alguns tipos de felicidade são realmente destrutivos para o corpo, a mente e os relacionamentos. Estar livre de desejos é uma prática importante. Contemple profundamente a natureza daquilo que você acha que vai lhe proporcionar felicidade e pense se, de fato, isso pode implicar sofrimento para aqueles que ama. É preciso ter certeza disso se queremos ser realmente livres. Volte-se para o momento presente, e desfrute as maravilhas da vida que estão disponíveis. Existem tantas coisas saudáveis capazes de nos proporcionar felicidade, como por exemplo um lindo nascer do sol, o céu azul, montanhas, rios, e os rostos felizes das pessoas que nos cercam.

O que mais podemos oferecer? Nosso frescor. "Inspirando, eu me vejo como uma flor. Expirando, eu me sinto com o frescor." Podemos inspirar e expirar três vezes para restaurar a flor dentro de nós. É um grande presente!

O que mais podemos oferecer? Paz. É maravilhoso sentar-se ao lado de alguém que esteja em paz. Nós nos beneficiamos com a sua paz. "Inspirando, eu sou a água calma. Expirando, reflito as coisas como elas são." Podemos oferecer nossa paz e nossa lucidez para aqueles que amamos.

O que mais podemos oferecer? Espaço. A pessoa amada precisa de espaço para ser feliz. Em um arranjo de flores, cada flor precisa de espaço ao seu redor para poder irradiar sua verdadeira beleza. As pessoas são como flores. Sem espaço interno e externo elas não podem ser felizes. Não podemos comprar este tipo de presente na loja. Temos que produzi-lo através da prática. E quanto mais dermos, mais teremos. Quando a pessoa que amamos está feliz, esta felicidade retorna para nós imediatamente. Nós damos algo a essa pessoa, mas na verdade estamos dando a nós mesmos.

Dar é uma prática maravilhosa. O Buda disse que quando se está zangado com alguém, a ponto de tentar de tudo e ainda continuar zangado, devemos praticar a perfeição da generosidade. Quando estamos com raiva, nossa tendência é punir a outra pessoa. Mas ao fazer isso só aumentamos nosso sofrimento. O Buda propôs que, em vez disso, mandássemos um presente para a pessoa que é motivo de nossa raiva. Quando estamos com muita raiva, não temos a menor vontade de sair e comprar um presente, por isso temos que preparar esse presente enquanto não estamos zangados. A seguir, quando tudo o mais falhar, devemos sair e enviar o presente para a pessoa. Constataremos, para nosso espanto, que logo estamos nos sentindo melhor. Você recebe aquilo que dá. Em vez de tentar punir a outra pessoa, ofereça exatamente aquilo de que a pessoa necessita. A prática da doação pode conduzir rapidamente ao bem-estar.

Quando alguém nos faz sofrer, é porque essa pessoa sofre profundamente dentro de si mesma, e seu sofrimento está se esparramando do lado de fora. Esta pessoa não precisa de mais sofrimento, precisa de ajuda. Essa é a mensagem que está sendo enviada. Se você conseguir entender isso, ofereça o que a pessoa precisa - alívio. Felicidade e segurança não são questões individuais. A felicidade e a segurança do outro são fundamentais para a sua felicidade e a sua segurança. Deseje o bem do outro com sinceridade, para que você também fique bem.

O que mais podemos oferecer? Compreensão. A compreensão é a flor da prática. Focalize sua atenção concentrada em um objeto, observe profundamente o objeto, e você terá insight e compreensão. Ao oferecer compreensão aos outros, eles deixarão imediatamente de sofrer.

A primeira pétala da flor das perfeições é a prática da generosidade. Recebemos aquilo que damos, muito mais depressa do que os sinais enviados por satélite. Quer você dê sua presença, sua estabilidade, seu frescor, sua firmeza, sua liberdade, ou sua compreensão, sua dádiva fará milagres. A generosidade é a prática do amor.

A segunda prática é o aperfeiçoamento dos preceitos, ou treinamentos da atenção plena. Os Cinco Treinamentos da Atenção Plena ajudam a proteger o corpo, a mente, a família e a sociedade. O Primeiro Treinamento da Atenção Plena versa sobre proteger as vidas dos seres humanos, animais, vegetais e minerais. Proteger outros seres significa proteger a nós mesmos. O segundo treinamento versa sobre impedir a exploração de seres humanos, de outros seres vivos e da natureza. Relaciona-se com a prática da generosidade. O terceiro tem a ver com proteger crianças e adultos do abuso sexual, e preservar a felicidade dos indivíduos e das famílias. Muitas famílias já foram separadas devido à má conduta sexual. Quando praticamos o Terceiro Treinamento da Atenção Plena, protegemos a nós mesmos, as famílias e os casais, porque ajudamos os outros a se sentirem seguros. O Quarto Treinamento da Atenção Plena versa sobre praticar a fala amorosa e a escuta atenciosa. O Quinto Treinamento da Atenção Plena é sobre consumir de maneira consciente.

A prática dos Cinco Treinamentos da Atenção Plena é uma forma de amor e de doação. Assegura a boa saúde e a proteção da nossa família e da sociedade. Shila paramita é uma grande dádiva que oferecemos à sociedade, à família e àqueles a quem amamos. A maior dádiva que podemos ofertar aos outros é praticar os Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Se vivermos de acordo com eles, estaremos protegendo a nós mesmos e as pessoas que amamos. Quando praticamos shila paramita, oferecemos o precioso presente da vida.

Vamos contemplar juntos as causas de nosso sofrimento, seja ele individual ou coletivo. Se fizermos isso, veremos que os Cinco Treinamentos da Atenção Plena são o remédio necessário para a doença de nossa época. Todas as tradições têm o equivalente aos Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Cada vez que vejo alguém receber e praticar os Cinco Treinamentos da Atenção Plena, fico feliz - pela pessoa, por sua família e por mim mesmo - porque sei que essa é a forma mais objetiva possível de se ter consciência de tudo o que ocorre. Precisamos de uma Sangha ao nosso redor para poder praticar com profundidade.



A terceira pétala da flor é a tolerância, kshanti paramita. A tolerância é a capacidade de receber, aceitar e transformar as coisas. Kshanti às vezes é traduzida também por paciência ou resignação, mas acho que "tolerância" é uma palavra que denota melhor o ensinamento de Buda. Quando praticamos a tolerância, não precisamos sofrer nem nos resignarmos, mesmo quando precisamos aceitar o sofrimento ou a injustiça, quando alguém diz ou faz algo que nos deixa com raiva, ou quando talvez algum tipo de injustiça é cometido contra nós. Mas se o coração for grande o bastante, não sofreremos.

O Buda oferece uma linda imagem sobre isso. Se pegarmos um punhado de sal e colocarmos em uma tigela com água, a água ficará salgada demais para beber. Mas a mesma quantidade de sal colocada em um grande rio não afetará sua água, e as pessoas ainda poderão bebê-la (lembrem-se de que esse ensinamento foi dado há 2.600 anos, quando ainda era possível beber água dos rios!). Devido à sua imensidão, o rio tem a capacidade de receber e transformar. O rio não sofre por causa de um punhado de sal. Se o seu coração for pequeno, uma palavra ou ação injusta fará você sofrer, mas se o coração for grande, e se tiver compreensão e compaixão, a palavra ou ação injusta não terá o poder de lhe causar sofrimento, porque você terá a capacidade de receber, aceitar e transformar rapidamente. O que conta aqui é a sua capacidade. Para poder transformar o sofrimento, o coração precisa ser grande como um oceano. Outra pessoa talvez sofra, mas se um bodhisattva ouvir as mesmas palavras desagradáveis não sofrerá. Tudo depende da forma de receber, aceitar e transformar. Se você guardar uma dor por muito tempo, é porque ainda não aprendeu a prática da tolerância.

Quando Rahula, o filho de Buda, fez dezoito anos, o Buda fez uma linda palestra sobre o Darma, em que falava sobre como praticar a tolerância. Shariputra, o tutor de Rahula, estava presente e ouviu atentamente, absorvendo os ensinamentos. Doze anos mais tarde, Shariputra teve a oportunidade de repetir esse ensinamento para uma congregação de monges e monjas. Foi no dia seguinte ao término de um retiro de três meses, durante uma estação chuvosa, quando todos os monges estavam se aprontando para ir embora e seguir em diferentes direções pregando os ensinamentos. Naquele dia, um monge disse ao Buda: "Senhor, esta manhã, quando o Venerável Shariputra ia partir, eu perguntei a ele onde ia, e em vez de responder à minha pergunta, ele me jogou no chão e nem sequer pediu desculpas."

O Buda perguntou a Ananda: "Shariputra já está muito longe?" e Ananda disse: "Não, Senhor, ele partiu há apenas uma hora." Então Buda pediu a um noviço que alcançasse Shariputra, convidando-o a voltar. Quando o noviço voltou acompanhado de Shariputra, Ananda convocou todos os monges que ainda estavam por lá. A seguir, o Buda entrou e perguntou formalmente: "Shariputra, é verdade que esta manhã quando você ia sair do mosteiro um irmão lhe fez uma pergunta, e você não respondeu? É verdade que em vez de responder você jogou o irmão no chão e nem sequer pediu desculpas?" E Shariputra respondeu a Buda diante de todos os monges e monjas da congregação.

"Senhor, eu me lembro do discurso que o senhor fez há doze anos para o monge Rahula, quando ele fez dezoito anos. O senhor ensinou-o a contemplar a natureza da terra, da água, do fogo e do ar, para desenvolver as virtudes do amor, da compaixão, da alegria e da equanimidade. Apesar de seu ensinamento ser dirigido a Rahula, eu também aprendi com ele, e tenho tentado observar e praticar este ensinamento.”

"Senhor, eu tenho tentado praticar como a terra. A terra é grande e aberta, e tem a capacidade de receber, aceitar e transformar. Quando as pessoas jogam sobre a terra substâncias puras e perfumadas, como por exemplo flores, perfumes ou leite fresco, ou mesmo quando jogam nela substâncias repugnantes como excremento, urina, sangue, catarro ou cuspe, a terra recebe tudo da mesma maneira, sem apego nem repulsa. Não importa o que jogamos na terra, ela sempre acolhe, aceita e transforma tudo aquilo que recebe. Eu faço o que posso para ser como a terra, a tudo recebendo sem resistir, sem me queixar, nem sofrer.”

"Senhor, eu pratico a atenção plena e a bondade amorosa. Um monge que não pratica a atenção plena ao corpo no corpo e às ações do corpo nas ações do corpo, poderia derrubar outro monge e deixa-lo lá deitado, sem pedir desculpas. Mas eu não costumo ser grosseiro com meus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas.”

"Senhor, eu aprendi a lição dada a Rahula, ou seja, que praticasse para me tornar como a água. Quando alguém derrama uma substância perfumada ou impura na água, ela recebe as duas coisas da mesma maneira, sem apego, sem aversão. A água é imensa, fluida, e tem a capacidade de receber, conter, transformar e purificar todas as coisas. Eu fiz o melhor que pude para me assemelhar à água. Um monge que não pratica a atenção plena, que não tenta se assemelhar à água, poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Meu Senhor, eu tenho praticado me assemelhar ao fogo. O fogo queima tudo, tanto o que é puro como o que é impuro, o belo e o repugnante, sem apego nem aversão. Se jogarmos flores ou seda no fogo, elas queimarão. Se jogarmos roupas velhas ou substâncias mal cheirosas, o fogo aceitará tudo da mesma maneira e queimará da mesma forma. Ele não discrimina. Por quê? Porque o fogo é capaz de receber, consumir e queimar todas as coisas que lhe são oferecidas. Eu tenho tentado ser como o fogo. Consigo queimar as coisas negativas para transformá-las. Um monge que não pratica a atenção plena ao olhar, ouvir e contemplar, poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Senhor, tenho tentado praticar para ser como o ar. O ar carrega todos os cheiros, bons e maus, sem apego nem aversão. O ar tem a capacidade de transformar, purificar e soltar todas as coisas. Senhor Buda, eu contemplei o corpo no corpo, o movimento do corpo no movimento do corpo, as posições do corpo nas posições no corpo, as sensações nas sensações e a mente na mente. Um monge que não pratica a atenção plena poderia jogar seu colega no chão, empurrando-o e ir embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Meu Senhor, eu sou como uma criança da casta dos 'intocáveis', que não tem nada para vestir, nenhum título ou medalha para pendurar nos trapos rotos. Tenho tentado praticar a humildade, porque sei que a humildade tem o poder da transformação. Todos os dias eu tento aprender. Um monge que não pratica a atenção plena poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim."

Shariputra continuou com seu discurso, o "Rugido do Leão", mas o outro monge, arrependido, descobriu o ombro direito e se ajoelhou, pedindo perdão: "Senhor, eu violei a Vinaya (regras de disciplina monástica). Por raiva e por ciúmes, eu disse uma mentira para desacreditar meu irmão mais velho no Darma. Eu imploro à comunidade que me permita praticar o Começar de Novo." Diante do Buda e de toda a Sangha, ele se prostrou três vezes para Shariputra. Quando Shariputra viu seu irmão prostrado, inclinou-se e disse: "Eu não tenho sido hábil o bastante, e por isso criei o mal-entendido. Eu sou também responsável por isso, e peço a meu irmão que me perdoe." A seguir ele também se prostrou três vezes diante do outro monge, e os dois se reconciliaram. Ananda pediu a Shariputra para ficar para uma xícara de chá antes de partir novamente em sua jornada.

Reprimir nossa dor certamente não é o ensinamento da tolerância. Temos que recebê-la, aceitá-la e transformá-la. A única forma de fazer isso é tornando o nosso coração maior. Nós contemplamos em profundidade para compreender e perdoar, caso contrário ficaremos aprisionados pela raiva e pelo ódio, e acharemos que a única forma de nos sentirmos melhor é castigar a outra pessoa. A vingança é um alimento não-saudável. A intenção de ajudar os outros, ao contrário, é extremamente saudável.

Para praticar a kshanti paramita, precisamos das outras perfeições. Se a nossa prática da tolerância não abarcar a compreensão, a generosidade e a meditação, estaremos apenas tentando esconder nossa dor, empurrando-a para o fundo da consciência. Isto é perigoso. Este tipo de energia irrompe mais tarde, destruindo a nós e os outros. Se praticarmos a contemplação em profundidade, nosso coração crescerá sem limites e nós sofreremos menos.


Quando alimentamos ódio e raiva, sentimo-nos queimar por dentro. A única forma de escapar é a compreensão. Quando compreendemos, sofremos menos e saberemos como atingir a raiz da injustiça. O Buda disse que se uma flecha nos atingir, sofreremos. Mas se uma segunda flecha nos atingir no mesmo lugar, sofreremos cem vezes mais. Quando somos vítimas de injustiça, se nos permitirmos a raiva, sofreremos cem vezes mais. Quando temos uma dor em nosso corpo, devemos inspirar e expirar, dizendo a nós mesmos: "É apenas uma dor física." Se ficarmos pensando que é um câncer e que vamos morrer logo, a dor será cem vezes pior. O medo e o ódio, nascidos da ignorância, amplificam nossa dor. Quem nos salva é a prajna paramita. Se conseguirmos ver as coisas como são, em si mesmas, não enxergando nada mais do que isso, sobreviveremos.


Por favor, pratiquem a contemplação profunda, e vocês sofrerão muito menos com as doenças, injustiças e pequenas dores que existem dentro de vocês. A contemplação profunda conduz à compreensão, e a compreensão conduz ao amor e à tolerância. Quando seu bebê está doente, você faz o que pode para ajudá-lo, evidentemente. Mas ao mesmo tempo você sabe que um bebê precisa ficar doente um determinado número de vezes para adquirir a imunidade de que necessita. Ao sofrer, você também sabe que irá sobreviver, porque já desenvolveu anticorpos. Não se preocupe. "Saúde perfeita" é apenas uma idéia, nada mais. Aprenda a viver em paz com os problemas que tiver. Tente transformá-los, mas não sofra demasiado.

Durante a sua vida, Buda também sofreu. Havia intrigas para competir com ele, e até mesmo para eliminá-lo. Uma vez, quando tinha uma ferida na perna e algumas pessoas tentaram ajudar, ele disse que era só uma pequena ferida, e fez o que pôde para minimizar a dor. Em outra ocasião, quinhentos monges seus saíram para montar uma Sangha concorrente, e ele aceitou isso sem reclamar. Finalmente, as dificuldades estavam a ponto de serem vencidas.


A quarta pétala da flor é a virya paramita, a perfeição do esforço, a energia ou a prática contínua. O Buda disse que no fundo da nossa consciência armazenadora, alaya vijnana, existem diversos tipos de sementes, positivas e negativas - sementes de raiva, ilusão e medo, assim como sementes de compreensão, compaixão e perdão. Muitas dessas sementes nos foram transmitidas por nossos ancestrais. Deveríamos aprender a reconhecer cada uma delas dentro de nós, para poder praticar o esforço. No caso de uma semente negativa, como raiva, medo, ciúmes ou discriminação, deveríamos evitar que fosse irrigada na vida cotidiana, porque cada vez que tal semente é regada ela aparece na camada superior de nossa consciência, o que significa sofrimento, para nós e para aqueles que nos cercam. A prática é impedir que a semente negativa seja regada.

Também reconhecemos as sementes negativas nas pessoas amadas, e tentamos não regá-las. Se o fizermos, os seres que amamos serão infelizes, e conseqüentemente nós também. Essa é a prática da "irrigação seletiva". Se você quer ser feliz, evite regar suas próprias sementes negativas e também as dos outros, e peça aos que o cercam que evitem regar as sementes que existem em você.

Tentamos reconhecer nossas sementes positivas, e viver nossa vida diária de tal forma que possamos ter contato com elas e ajudá-las a se manifestar na camada superior da nossa consciência, a mano vijnana. Cada vez que essas sementes se manifestam e permanecem lá por algum tempo, ficam mais fortes. Se as sementes positivas ficarem mais fortes, seremos mais felizes e tornaremos felizes aqueles que nos cercam. Reconheça as sementes positivas na pessoa que você ama, regue essas sementes, e essa pessoa ficará cada vez mais feliz. Quando tiver tempo, por favor regue tudo o que há para ser regado. É uma grande prática de esforço, e traz resultados imediatos.


Imagine um círculo dividido em dois. Embaixo está a consciência armazenadora e em cima a consciência mental. Todas as formações mentais estão no fundo da consciência armazenadora. Todas as sementes podem se manifestar no nível superior, ou seja, na consciência mental. A prática consiste em fazer o melhor que pudermos para não deixar que as nossas sementes negativas sejam atingidas no dia-a-dia, para que não tenham oportunidade de se manifestar. As sementes da raiva, discriminação, desespero, ciúmes e desejo estão todas presentes. Fazemos o que podemos para impedi-las de subir. Dizemos às pessoas com quem vivemos: "Se você realmente me ama, não regue essas sementes em mim. Não é bom para a minha saúde nem para a sua." Temos que saber quais os tipos de sementes que não devem ser alimentados. Caso uma semente negativa, uma semente de dor, for regada e se manifestar, usaremos todo o nosso poder para abraçá-la com nossa atenção plena e ajudá-la a voltar para o lugar de onde veio. Quanto mais tempo tais sementes ficarem na consciência mental, mais fortes se tornarão.

O Buda sugeriu uma prática chamada "trocar a cavilha". Quando uma cavilha de madeira não é do tamanho certo, ou está podre, ou está quebrada, o carpinteiro a substitui por outra, colocando a nova cavilha exatamente no lugar da velha e martelando em cima. Se em você surgir uma formação mental considerada não-saudável, pratique convidando uma formação mental saudável para substituí-la. Existem diversas sementes lindas e saudáveis em nossa consciência armazenadora. Apenas inspire e expire, convidando uma delas a subir e a não sadia descerá. Isto se chama de "trocar a cavilha".

Outra prática consiste em tocar tantas sementes positivas na consciência armazenadora quantas possível, para que se manifestem na consciência mental. Em um aparelho de televisão, quando queremos assistir a um determinado programa, apertamos o botão correspondente. Portanto, só chame sementes agradáveis para a sala de sua consciência. Nunca convide uma visita que vai lhe trazer tristeza e aflições. E diga aos seus amigos: "Se vocês gostam de mim, por favor, alimentem as boas sementes que existem em mim." Uma semente fantástica é a atenção plena. A atenção plena é o Buda em nós. Use todas as oportunidades que tiver para regá-la e para fazer com que se manifeste no nível superior da consciência.

A quarta prática é manter uma semente saudável o mais tempo possível depois que ela se manifestou. Se a atenção plena for mantida por quinze minutos, a semente da atenção plena será fortalecida, e da próxima vez que você precisar da energia da atenção plena será mais fácil trazê-la à superfície. É muito importante ajudar as sementes da atenção plena, do perdão e da compaixão a crescerem, e a melhor forma de fazer isso é mantê-las na consciência mental o máximo de tempo possível. Isso se chama transformação na base - ashraya paravritti. Este é o verdadeiro sentido da virya paramita, a perfeição do esforço.

A quinta prática é a dhyana paramita, a perfeição da meditação. Dhyana é chamada de zen em japonês, chan em chinês, thien em vietnamita e son em coreano. A dhyana, ou meditação, tem dois atributos. O primeiro é o de parar (shamatha). Nós passamos nossa vida correndo atrás de uma idéia ou outra de felicidade. Parar significa parar de correr, parar de esquecer, parar de estar sempre preso no passado ou no futuro. Voltamos para casa, para o momento presente, onde a vida realmente se desenrola. Esse momento contém todos os outros momentos. Aqui podemos entrar em contato com nossos ancestrais, nossos filhos e netos, mesmo que eles ainda não tenham nascido. Shamatha é a prática de acalmar nosso corpo e nossas emoções através da prática de respirar consciente, caminhar consciente e meditar consciente. A shamatha é também a prática da concentração, para que possamos viver cada momento intensamente e entrar em contato com o nível mais profundo de nosso ser.

O segundo aspecto da meditação é olhar em profundidade (vipashyana), para ver a verdadeira natureza das coisas. Você olha com profundidade a pessoa que ama e descobre que tipos de sofrimento ou de dificuldades ela traz dentro de si, e também suas aspirações e anseios. A compreensão é uma grande dádiva, mas uma vida diária conduzida com atenção plena também é uma dádiva. Fazer tudo conscientemente é a prática da meditação, porque a atenção plena sempre alimenta a concentração e a compreensão.

A sexta pétala da flor é a prajna paramita, a perfeição da sabedoria. Este é o tipo mais elevado de compreensão, que se situa além de todo o conhecimento, conceitos, idéias e pontos de vista. Prajna é a natureza de Buda que existe em nós. É o tipo de compreensão que tem o poder de nos levar à outra margem, a margem da liberdade, da emancipação e da paz. No Budismo Mahayana a prajna paramita é descrita como a Mãe de Todos os Budas. Tudo o que é bom, lindo e verdadeiro nasce de nossa mãe, a prajna paramita. Ela está em nós, só precisamos atingi-Ia para que ela se manifeste. A Compreensão Correta é a prajna paramita.

Existe muita literatura sobre essa perfeição, e o Sutra do Coração é um dos discursos mais curtos sobre o assunto. O Sutra do Diamante e o Ashtasahasrika Prajnaparamita (Discurso dos 8.000 versos) são os mais antigos de todos. A prajna paramita é a sabedoria da não-discriminação.

Se você observar bem a pessoa amada, conseguirá entender seu sofrimento, suas dificuldades, e também suas aspirações mais profundas. E esta compreensão tornará possível o verdadeiro amor. Quando alguém nos entende, sentimo-nos felizes. Se pudermos oferecer compreensão a alguém, este é o verdadeiro amor. A pessoa que recebe nossa compreensão desabrocha como uma flor, e ao mesmo tempo nós também somos recompensados. A compreensão é o fruto da prática. Olhar em profundidade significa estar lá, estar atento, estar concentrado. Ao olharmos em profundidade para um objeto, fazemos com que a compreensão floresça. O ensinamento de Buda nos ajuda a entender a realidade de forma mais completa.

Olhem uma onda na superfície do oceano. Uma onda é uma onda. Ela tem um começo e um fim. Pode ser alta ou baixa, mais bonita ou menos bonita que as outras ondas. Mas, ao mesmo tempo, uma onda nada mais é do que água. A água é o fundamento do ser da onda. É importante que a onda saiba que ela é água, e não apenas uma onda.

Nós também vivemos nossa vida como indivíduos. Acreditamos que temos um começo e um fim, e que estamos separados dos outros seres vivos. É por isso que Buda nos aconselhou a olhar mais profundamente até atingir o fundamento de nosso ser, o Nirvana. Todas as coisas trazem em si a natureza do Nirvana. Tudo já foi "nirvanizado". Esta é a razão do ensinamento do Sutra do Lótus. Quando contemplamos profundamente, tocamos a natureza da realidade. Ao contemplar uma pedra, uma flor, ou nossa própria alegria, paz, tristeza ou medo, entramos em contato com a dimensão maior do existir, que nos revelará que temos a natureza do não-nascimento e da não-morte.

Nós não precisamos atingir o Nirvana, porque sempre estivemos lá. A onda não tem que procurar água. Ela já é água. Nós somos o alicerce de nosso ser. Quando a onda entende que ela é água, todo o seu medo desaparece. Depois que tocamos o chão do existir, depois que tocamos Deus ou o Nirvana, recebemos a dádiva da ausência de medo, que é a base da verdadeira felicidade. O maior presente que podemos oferecer a outros é nossa falta de medo. Ao viver com intensidade todos os momentos de nossa vida, tocando o nível mais profundo de nosso ser, estamos praticando a prajna paramita. A prajna paramita é atravessar para o outro lado com a compreensão, com o insight.(...)

Olhe para a sua situação e veja como você é rico internamente. Reconheça que tudo o que você tem no momento é um presente. Sem esperar nem mais um minuto, comece a praticar. Quando começar a praticar, vai se sentir imediatamente mais feliz. O Darma não é uma questão de tempo. Verifique isso por si mesmo: o Darma pode transformar sua vida.

Quando você está preso à tristeza, ao sofrimento, à depressão, à raiva ou ao medo, não fique na margem do rio em que existe o sofrimento. Passe para a outra margem, onde há liberdade e não existem medo nem raiva. Pratique a respiração consciente, a caminhada consciente, a contemplação profunda, e acabará passando para a margem da liberdade e do bem-estar. Não é necessário praticar por cinco, dez ou vinte anos para conseguir atravessar para a outra margem. Você pode fazer agora.

(Do livro “A essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

O Buda aconselha Rahula a praticar a tolerância

Buda aconselhou Rahula (seu filho) a praticar sendo a terra, a grande terra. O Buda disse, "Rahula, pratique como se você fosse como a terra". As pessoas podem jogar na terra coisas como perfume, fezes, urina, todo o tipo de coisa suja, mas a terra sempre recebe tudo sem raiva. Não interessa se é perfume ou jóias ou ouro ou prata ou flores ou lixo ou sujeira ou fezes ou urina, a terra recebe tudo isso sem ressentimento algum, sem raiva alguma, por que a terrra é grande e larga. A terra tem o poder de transformar tudo isso. Você, por exemplo, encontra um rato morto na sua cozinha e quer se livrar logo dele - onde você vai pôr? Você o joga na terra. Imediatamente a terra transforma o rato morto em algo que você consiga aceitar. A terra tem um grande poder de transformação porque ela é grande. Assim, pratique de tal modo que o seu coração se torne tão grande quanto a terra. Você só sofrerá se você for pequeno, se seu coração for pequeno. Quando seu coração se expande, você não mais sofre, não precisa mais fazer um esforço para suportar o sofrimento.


Outro dia eu comecei a falar usando a imagem de uma caixa d'água. Ela pode conter algo em torno de 50 litros de água e se você joga algo sujo no seu interior não poderá mais beber a água - você terá que jogar tudo fora. Mas se você jogar aquela sujeira em um grande rio, em um rio imenso, ainda assim você poderá beber da sua água. Imediatamente, o rio, com toda a sua água e lama, transforma a sujeira que você jogou nele e tudo estará perfeito novamente - toda a cidade continuará a beber a água do rio. Não é que o rio tenha que suportar. Estamos falando aqui de indulgência, tolerância - como um barco que carrega você para a outra margem - kshanti-paramita, "cruzando para o outro lado", para a margem da felicidade, da alegria e da libertação pelo barco do indulgência.


Se você tornar o seu coração tão grande quanto a terra, você poderá aceitar qualquer coisas que as pessoas façam ou digam a você sem sofrimento. Mas se o seu coração for pequeno, você sofrerá bastante. Assim Rahula praticou ser como a terra, que é a prática de amor chamada as Quatro Mentes Incomensuráveis. Porque com a prática, seu coração crescerá mais e mais e mais, sempre cada vez maior. E seu coração abraçará a tudo e a todos - sem nenhum inimigo, não existe nenhum inimigo. Cada vez que invocamos o Buda, dizemos, " querido Buda, seu coração é tão grande que você consegue abraçar a todos os seres vivos , sua solidariedade abarca a totalidade do cosmos". É a mesma coisa quando seu coração é grande, chamando-os de amigos ou inimigos - você os abraça a todos e os ama, sejam eles cruéis ou menos cruéis, todos são igualmente objeto de sua solidariedade.


Se você é um estudante do Buda, tente praticar de modo a que seu coração cresça a cada dia, para que você não sofra, Mesmo se disserem coisas muito cruéis e mesquinhas a você, se fizerem coisas cruéis a você, mesmo que tentem te suprimir e matar. Como se pode matar um rio? Como se pode matar a terra? Ela é tão grande. Alguma sujeira não destruirá o rio, porque o rio é grande. "Rahula, pratique como se você fosse a água. Se as pessoas jogam na água flores, fragrância, comida, leite ou urina, fezes ou corpos de animais mortos, a água continuará a receber tudo sem rancor, sem ressentimento, sem ódio; porque a água tem a capacidade de lavar tudo. Você pode lavar a tigela do Buda com água, lavar as roupas sujas, alguém cheio de sangue, a água receberá tudo, poderá lavar tudo, transformar tudo. Então, Rahula, por favor, pratique para que o seu coração se torne como a água, para poder receber tudo sem ressentimento ou rancor.


Rahula, pratique como o fogo. O que quer que você jogue ao fogo, roupa ou papel ou flores ou coisas sujas, o fogo aceitará e queimará tudo. Quer seja um perfume ou um mal cheiro o fogo aceita tudo e reduz tudo a cinzas e fumaça, por que o fogo tem o poder de tranformar. Rahula, pratique como se fosse o ar. Se você joga no ar algo fragrante ou mal cheiroso, se você queima incenso ou borracha, o ar aceita tudo - porque o ar tem o poder de transformar, pois é imenso". O Buda estava instruindo o jovem monge Rahula, mas Shariputra, o tutor de Rahula, estava lá atrás, absorvendo cada palavra, e praticou esse ensinamento por muitos e muitos anos.


Thich Nhat Hanh


Gassho!