quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O Bodhisatta e as Seis Paramitas

O Bodhisatta e as Seis Paramitas


Pema Chödrön é uma monja buddhista norte-americana e uma das estudantes mais brilhantes de Chögyam Trungpa Rinpoche, famoso mestre de meditação. Ela é autora das obras The Wisdom of No Escape e Start Where You Are, e também professora em Gambo Abbey (Nova Scotia, Canadá), o primeiro monastério tibetano na América do Norte estabelecido para ocidentais.

Segundo Chödrön, a felicidade está ao nosso alcance, e no entanto tantas vezes a perdemos de vista, ironicamente na tentativa de evitar dor e sofrimento. O texto radical e compassivo de Pema Chödrön vem de encontro às nossas expectativas e hábitos de conduta Quando Tudo Se Desfaz (Editora Gryphus), e nos confronta com a sabedoria buddhista. Existe somente uma atitude em relação ao sofrimento, ensina Chödrön, e essa atitude é a que caminha na direção das situações difíceis com afabilidade e curiosidade, se deixando levar pela insegurança da situação. É ali, no meio do caos, que descobrimos a verdade e o amor indestrutíveis.

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Suponha que exista um lugar aonde poderíamos ir para aprender a arte da paz, uma espécie de campo de treinamento para guerreiros espirituais. Em vez de gastar horas e horas nos disciplinando para derrotar o inimigo, poderíamos passar horas e horas desfazendo as causas da guerra.

Tal lugar poderia ser chamado de campo de treinamento do bodhisattva — ou treinamento para os servidores da paz. A palavra bodhisattva tem a ver com aqueles que se comprometeram com o caminho da compaixão. Esse campo de treinamento poderia ser dirigido por Nelson Mandela, Madre Teresa ou Sua Santidade, o Dalai Lama. Mais provavelmente, seria dirigido por pessoas que nem mesmo conhecemos e de quem nunca ouvimos falar, apenas os homens e mulheres comuns de toda parte do mundo que dedicam sua vida a ajudar os outros a se livrarem da dor.

Os métodos ensinados no treinamento do bodhisattva poderiam incluir a prática de meditação e tonglen. Poderiam também incluir as seis paramitas — as seis atividades dos servidores da paz.

A palavra paramita significa "ir até a outra margem". Essas ações são como um bote que usamos para atravessar o rio do samsara. As paramitas são também chamadas ações transcendentes porque são baseadas em dar um passo além das noções convencionais de virtude e não-virtude. Elas nos treinam para irmos completamente além das limitações da visão dualista e para desenvolvermos uma mente flexível.

Um dos principais desafios desse campo seria evitar tornar-se moralista. Com pessoas vindas de todos os países, haveria muitas opiniões conflitantes sobre o que é ou não é ético, sobre o que é ou não proveitoso e, provavelmente, logo precisaríamos pedir às pessoas mais sensatas e despertas do local que dessem um curso sobre flexibilidade e humor!

A sua própria maneira, Trungpa Rinpoche idealizou um curso assim para seus alunos. Ele pedia para memorizarmos certos cantos e alguns meses depois de a maioria de nós ter conseguido aprender, mudava a letra. Ele nos ensinava determinados rituais e queria que praticássemos com muita precisão. Quando estávamos quase começando a criticar aqueles que erravam ao praticá-los, ele nos ensinava os rituais de forma totalmente diferente. Mandava imprimir lindos manuais com todos os procedimentos corretos mas, de modo geral, eles já estavam desatualizados antes mesmo de serem publicados. Após anos desse tipo de treinamento, começa-se a desistir de ter controle. Se as instruções de hoje são para colocarmos tudo do lado direito, fazemos isso tão impecavelmente quanto possível. Se amanhã as instruções são para colocar tudo do lado esquerdo, nós as cumprimos com todo o coração. A idéia de que existe uma única maneira correta como que se dissolve em névoa.

Meditação e tonglen são métodos bastante testados para treinar a mente rígida na habilidade de adaptar-se e deixar fluir. As seis paramitas complementam essas práticas e trazem o treinamento para todas as atividades de nossa vida. Elas se tornaram os meios para transformam tudo que fazemos em uma maneira de viver a arte da paz.

O que torna as paramitas diferentes das ações comuns é que são baseadas no prajna. Prajna é uma maneira de ver que continuamente dissolve qualquer tendência a usar as situações para conseguir alguma base sob os pés. É uma espécie de detector de besteiras que nos protege contra sermos cheios de razão.

Quando estamos sendo treinados na arte da paz, não nos fazem qualquer promessa de que, já que temos boas intenções, tudo vai dar certo. Na verdade, não há nenhuma promessa de qualquer tipo de realização. Em vez disso, somos encorajados a apenas olhar profundamente para a alegria e para a tristeza, para o riso e o choro, para a esperança e o medo, para tudo aquilo que vive e morre. Aprendemos que a gratidão e a ternura são o que realmente nos cura.

Isso não significa que vamos dizer: "Não é tanto por mim, mas se eu mudasse o mundo, ele seria melhor para as outras pessoas." É menos complicado que isso. Não nos dispomos a salvar o mundo — perguntamos a nós mesmos como estão os outros e refletimos como nossas atitudes afetam o coração dos demais.

As cinco primeiras ações transcendentes são generosidade, disciplina, paciência, empenho e meditação. Elas são inseparáveis da sexta — o prajna, que torna impossível utilizar nossas ações para conseguir segurança. O prajna é a sabedoria que corta o imenso sofrimento decorrente de tentar proteger nosso próprio território.

Em si mesmas, as palavras generosidade, disciplina, paciência e empenho podem ter uma conotação rígida para muitos de nós. É possível que elas soem como uma pesada lista do que "devemos" ou "não devemos" fazer, ou nos façam lembrar das regras escolares ou da pregação dos moralistas. Entretanto, essas paramitas não têm nada a ver com estar à altura de algo. Se pensarmos que elas se referem a alcançar algum padrão de perfeição, nós nos sentiremos derrotados antes mesmo de começar. É mais correto expressar as paramitas como uma caminhada explanatória, não como uma série de mandamentos gravados em uma pedra.

A primeira paramita é a generosidade, a jornada para aprender a dar. Quando nos sentimos inadequados e sem valor, armazenamos coisas. Estamos com tanto medo — medo de perder, medo de nos sentirmos ainda mais feridos pela carência. Essa avareza é extremamente triste. Ver como nos agarramos e apegamos com tanto medo pode até dar vontade de chorar. Esse apego nos causa enorme sofrimento. Queremos consolo mas, em vez disso, reforçamos a aversão, o sentimento de pecado, a sensação de que somos um caso perdido.

Quando vamos além da pobreza de estar atado, as causas da agressão e do medo começaram a se dissolver por si mesmas. Portanto, a idéia básica da generosidade é treinar-se para pensar grande, para fazer a nós mesmos o maior favor do mundo e parar de cultivar nossos próprios esquemas. Quanto mais experimentamos a riqueza fundamental, mais conseguimos abrir mão de nosso apego.

Essa riqueza fundamental está disponível a cada momento. A chave está em relaxar: relaxar diante de uma nuvem no céu, de um passarinho com asas cinzentas, do som do telefone que está tocando. Podemos ver a simplicidade nas coisas como elas são. Podemos experienciar os cheiros e sabores, sentir as emoções e ter lembranças. Quando somos capazes de estar bem ali sem dizer: "Eu definitivamente concordo com isso" ou "eu definitivamente não concordo com isso", mas apenas estando ali muito diretamente, encontramos a riqueza fundamental por toda parte. Ela não é nossa nem de ninguém, ela está sempre disponível para todos. Nas gotas de chuva e nas gotas de sangue, na melancolia e no prazer, essa riqueza é a natureza de todas as coisas. Ela é como o sol que brilha para todos sem discriminação. É como um espelho, já que está disposta a refletir qualquer coisa sem aceitar ou rejeitar.

A jornada da generosidade consiste em conectar-se com essa riqueza, apreciando-a tão profundamente que ficamos dispostos a nos desfazer daquilo que a bloqueia. Tiramos nossos óculos escuros, nossos casacos compridos, nossos capuzes e disfarces. Em resumo, nós nos abrimos e nos permitimos ser tocados. Esse processo é chamado de construção da confiança na riqueza que tudo permeia. Na vida cotidiana, no nível mais comum, nós a experimentamos como flexibilidade e cordialidade.

Quando alguém toma formalmente o voto do bodhisattva, no momento mais importante da cerimônia, entrega um presente ao mestre. As instruções são para que se dê algo precioso, algo de que é difícil separar-se. Certa vez, passei um dia inteiro com um amigo que estava tentando decidir o que dar. Assim que ele se resolvia por alguma coisa, seu apego por tal objeto tornava-se intenso. Depois de algum tempo, estava se sentindo em frangalhos. O simples pensamento de perder apenas um de seus objetos favoritos era mais do que podia suportar. Mais tarde, mencionei esse episódio a um mestre que estava em visita. Ele disse que essa situação poderia representar uma oportunidade para que esse homem desenvolvesse compaixão por si mesmo e por todos que estivessem igualmente presos no sofrimento do apego — por todos aqueles que simplesmente não conseguem abrir mão.

Dar bens materiais pode ajudar as pessoas. Se são necessários alimentos e podemos dá-los, fazemos isso. Se são necessários abrigos, livros ou remédios e podemos dá-los, fazemos isso. Da melhor forma possível, cuidamos de qualquer pessoa que precise de nós. Entretanto, a verdadeira transformação ocorre quando abandonamos nosso apego e nos desfazemos daquilo que julgávamos impossível dar. As atitudes tomadas no nível mais exterior têm o poder de desfazer padrões profundamente enraizados de apego a si mesmo.

À medida que conseguirmos dar desse modo, poderemos ensinar essa habilidade aos outros. Quando tocamos a simplicidade e a bondade de tudo, e percebemos que fundamentalmente não estamos atolados na lama, é possível compartilhar esse alívio com os demais e prosseguir juntos na jornada. Compartilhamos o que já aprendemos juntos na jornada. Compartilhamos o que já aprendemos sobre tirar as viseiras e abrir as armaduras, sobre ser destemido o bastante para remover a máscara.

Também podemos dar de presente o dharma. Na medida em que somos capazes, damos instruções sobre meditação. Falamos às pessoas sobre tonglen. Mostramos livros e fitas, avisamos sobre palestras e sessões de prática. Damos às pessoas ferramentas para que descubram por si mesmas o que nos encorajo a soltar nosso apego, o que nos encorajou a pensar grande.

Dissolver as causas da agressão exige disciplina, uma disciplina suave mas muito precisa. Sem a paramita da disciplina, simplesmente não temos o apoio necessário para evoluir.

Lembro o primeiro retiro que conduzi após a publicação de The Wisdom of No Escape [A Sabedoria de Não Ter Saída]. As pessoas, na maioria, vieram porque se sentiam inspiradas pela noção de maitri que permeia este livro. Lá pelo terceiro dia do programa, estávamos todos sentados em meditação quando, de repente, uma mulher se levantou, espreguiçou-se um pouco e deitou-se no chão. Mais tarde, quando perguntei a ela sobre isso, respondeu: "Bem, eu estava tão cansada que resolvi ser bondosa comigo mesma e me dar descanso." Foi então que percebi que precisava falar sobre a magia da disciplina e sobre não se deixar levar pelas próprias oscilações de humor.

A primeira vez em que meditei com os alunos de Trungpa Rinpoche foi em 1972. Ele estava há pouco na América do Norte e sua ambientação, como costumávamos chamar, estava começando a se desenvolver. Em um canto da sala, um homem havia se equilibrado em cima de três almofadas redondas e, a cada cinco ou dez minutos, elas desmoronavam. Então, ele se ajeitava mais uma vez e continuava. Outra aluna, a toda hora, dava um pulo e saía da sala chorando. Ela repetiu isso umas cinco vezes, durante uma hora de prática sentada. Quando iniciamos a meditação em movimento, havia tantas maneiras excêntricas e diferentes de praticá-la quanto o número de pessoas na sala. Um arqueava muito os joelhos e caminhava como se estivesse flutuando no espaço, outro, andava para trás. O conjunto era engraçado e nos distraía muito. Pouco depois disso, Rinpoche lentamente começou a introduzir uma forma padrão de meditação e as coisas se acalmaram bastante.

Não disciplinamos o que é "mau" ou que está "errado" em nós. Disciplinamos qualquer forma de fuga potencial da realidade. Em outras palavras, a disciplina nos permite estar bem ali e nos conecta com a riqueza do momento.

O que torna a disciplina livre de severidade é o prajna. Não é o mesmo que receber instrução para não desfrutar daquilo que é prazeroso ou para controlarmos a qualquer custo. Em lugar disso, a jornada da disciplina fornece o encorajamento que nos permite deixar fluir. É um tipo de processo de desconstrução que nos dá apoio para irmos contra a textura de nossos dolorosos padrões habituais.

No nível externo, podemos pensar na disciplina como uma estrutura — um período de meditação de trinta minutos ou uma aula de duas horas sobre o dharma. O melhor exemplo é provavelmente a técnica da meditação. Sentamos em uma determinada posição e permanecemos tão fiéis à técnica quanto possível. Apenas direcionamos uma leve atenção para nossa expiração, continuamente, atravessando alterações de humor, lembranças, dramas e tédio. O simples processo repetitivo funciona como um convite para que a riqueza fundamental entre em nossa vida. Dessa forma, seguimos as instruções, exatamente como outros meditadores anteriores a nós vêm fazendo há séculos.

Dentro dessa estrutura, prosseguimos com compaixão. Assim, no nível externo, a disciplina está em voltar à suavidade, à honestidade, ao deixar fluir. Nesse nível, ela consiste em encontrar o equilíbrio entre não estar nem muito tenso nem muito distendido — nem muito relaxado nem muito rígido.

A disciplina nos dá apoio para desacelerarmos e para estarmos presentes o bastante para viver nossa vida sem fazer dela uma grande confusão. Ela nos fornece encorajamento para darmos um passo adiante na direção de não termos um chão sob nossos pés.

O poder da paramita da paciência é que ela representa um antídoto contra a raiva, um meio para aprender a amar e apreciar tudo aquilo que encontramos no caminho. Paciência não significa resignação — suportar estoicamente algo. Em qualquer situação, em vez de reagir rapidamente, podemos mastigá-la, sentir seu cheiro, olhar para ela e estar abertos para ver o que está ali. O oposto da paciência é a agressão — o desejo de saltar e mover-se, de fazer pressão contra a vida, de preencher os espaços. A jornada da paciência envolve relaxar, uma sensação de encantamento.

Uma amiga me contou que sua avó, descendente em parte de Cherokees, costumava levar a ela e a seu irmão ainda pequenos para caminhar e observar os animais. Sua avó dizia: "Se vocês ficarem imóveis, poderão ver alguma coisa. Se ficarem bem quietos, poderão ouvir algo." Ela nunca usava a palavra paciência, mas foi essa a lição que eles aprenderam.

Tonglen é uma maneira de praticar a paciência. Quando queremos fazer uma súbita mudança, quando começamos a correr pela vida, quando sentimos que precisamos de soluções, quando alguém grita conosco e nos sentimos ofendidos, quando desejamos gritar de volta ou acertar as contas, estamos querendo pôr para fora nosso veneno. Em vez disso, podemos nos conectar com a inquietação humana fundamental, com a agressão humana básica, praticando tonglen para todos os seres. Assim podemos enviar uma sensação de espaço que acalma ainda mais a situação. Ao sentar e ficar ali, damos espaço para que a reação habitual não aconteça. Nossas palavras e ações podem ser muito diferentes, apenas porque, antes de mais nada, demos a nós mesmos um tempo para tocar, sentir e ver a situação.

Como as outras paramitas, o empenho tem uma qualidade de jornada, de processo. No início, percebemos que nem sempre conseguimos praticá-lo. A questão torna-se então: como entrar em contato com a inspiração? Com o brilho e a alegria que estão disponíveis a cada momento? O empenho não tem nada a ver com esforço. Não se trata de um projeto a terminar ou de uma corrida que precisamos vencer. É como acordar em um dia de frio e neve, em uma cabana na montanha, prontos para uma caminhada e saber que, antes de mais nada, é preciso levantar e acender o fogo. Gostaríamos de ficar deitados, aconchegados, mas levantamos e acendemos o fogo porque a luminosidade do dia que nos aguarda é maior que nossa vontade de ficar na cama.

Quanto mais nos conectamos com uma perspectiva mais ampla, mais nos unimos a uma viagem alegria. O empenho é o mesmo que entrar em contato com nossa fome de iluminação. Ele nos permite agir, dar e trabalhar com apreço por tudo que surge no caminho. Se realmente soubéssemos quanto sofrimento nossa tentativa de evitar a dor e buscar o prazer traz ao planeta como um todo — como essa atitude nos torna infelizes e interrompe a ligação com nosso coração e inteligência fundamentais — sairíamos correndo e praticaríamos meditação como se a casa estivesse pegando fogo. Praticaríamos como se uma enorme cobra tivesse acabado de cair em cima de nós — não pensaríamos que temos tempo de sobra e que podemos deixar esse assunto para mais tarde.

Pelo prajna, essas ações tornam-se os meios para abandonar nossas defesas. Todas as vezes em que damos algo, sempre que praticamos disciplina, paciência ou empenho, é como se estivéssemos tirando de cima dos ombros uma pesada carga.

A paramita da meditação nos permite continuar nessa jornada. Ela é o alicerce para uma sociedade iluminada que não está baseada em vencer ou ser derrotado, em ganho ou perda.

Quando sentamos para meditar, podemos nos conectar com algo incondicional — um estado mental, um ambiente básico que não segura ou rejeita nada. A meditação é, provavelmente, a única atividade que não acrescenta nada ao cenário. Tudo pode vir e ir, sem maiores floreios. A meditação é uma ocupação completamente não-violenta, não-agressiva. Não preencher o espaço e permitir a possibilidade de contato com uma abertura incondicional — essas atitudes nos fornecem a base par uma verdadeira mudança. Vocês podem achar que isso é propor a si mesmo uma tarefa quase impossível. Talvez seja verdade. Por outro lado, entretanto, quanto mais sentamos com esta estabilidade, mais descobrimos que, no final das contas, ela é sempre possível.

Quando nos apegamos a pensamentos e lembranças, estamos nos apegando àquilo que não pode ser agarrado. Quando tocamos esses fantasmas e permitimos que eles se dissipem, podemos descobrir um espaço, uma pausa na tagarelice, um vislumbre do céu aberto. Esse é nosso direito inato — a sabedoria com a qual nascemos, a manifestação ampla e clara da riqueza e da abertura primordiais, da própria sabedoria primordial. Para isso, tudo que precisamos é repousar sem distrações no presente imediato, neste exato momento. E, quando formos arrastados por pensamentos desejosos, esperanças e medos, mais uma vez podemos voltar ao momento presente. Estamos aqui. É como se o vento nos carregasse e o próprio vento nos trouxesse de volta. Podemos repousar no espaço que existe quando um pensamento termina e o próximo ainda não começou. Nós nos treinamos em voltar para a essência imutável deste exato momento. É daí que vem toda a compaixão e inspiração.

A sexta paramita é o prajna, aquilo que transforma todas as ações em ouro. Diz-se que as outras cinco paramitas podem nos dar pontos de referência, mas o prajna corta tudo isso. O prajna nos transforma em desabrigados. Não temos nenhum lar e, por isso, podemos finalmente relaxar. Não há mais luta. Já não é preciso morder. Já não é preciso tomar partido.
Às vezes, sentimos uma enorme saudade de nossos velhos hábitos. Quando trabalhamos com a generosidade, percebemos nossa nostalgia pelo desejo de apegar-se. Quando trabalhamos com a disciplina, podemos observar como queremos pular fora e não nos conectarmos de jeito algum. À medida que trabalhamos com a paciência, descobrimos nossa vontade de acelerar. Quando praticamos o empenho, percebemos nossa preguiça. Com a meditação, vemos nossa discursividade sem fim, nossa inquietação e nossa atitude de "pouco me importa".

Portanto, simplesmente deixamos que essa nostalgia exista, sabendo que todos os seres humanos sentem o mesmo. Existe um lugar para a nostalgia, assim como existe espaço para tudo nesse caminho. Ano após ano, simplesmente continuamos a desistir de ter alguma base.

Esse é o treinamento do bodhisattva, o treinamento dos servidores da paz. O mundo precisa de pessoas treinadas assim — de políticos bodhisattvas, policiais bodhisattvas, pais bodhisattvas, motoristas de ônibus bodhisattvas, bodhisattvas atendendo no banco e no supermercado. Somos necessários em todos os níveis da sociedade. Somos necessários para transformar nossas mentes e ações, para o bem dos demais e para o futuro do mundo.

(Chödrön, Pema. Quando tudo se desfaz: instruções para tempos difíceis.
Traduzido por Helenice Gouvêa. Rio de Janeiro: Gryphus, 1999. Pág. 137-147.

http://www.dharmanet.com.br/vajrayana/chodron4.htm

fonte:

sábado, 6 de agosto de 2011

A Arte de Morrer - Monja Coen

A lenha se transforma em cinza.

A cinza não se transforma em lenha novamente.

Mas não devemos pensar que a cinza é depois e que a lenha é antes.

Saiba que a lenha tem a sua posição no darma*, de lenha, e assim, sendo lenha tem seu passado e seu futuro.

Embora tenha passado e futuro, atravessa passado e futuro.

A cinza está em sua posição do darma* de cinza e tem seu passado e futuro.

Assim como a lenha, depois de se tornar cinza, não volta a ser lenha novamente, da mesma maneira uma pessoa, após a morte, não volta à vida.

Por isso não dizemos que a vida se transforma em morte.

Este é o caminho estabelecido do Darma* de Buda.

Por esta razão é chamado de não nascido.

A morte não se torna vida.

Este é o estabelecido girar da roda do Darma* de Buda.

Por esta razão é chamado de não morto.

A vida tem o seu próprio tempo: começo, meio e fim.

A morte tem o seu próprio tempo: começo, meio e fim.

Por exemplo, é como inverno e primavera.

Não pensamos que o inverno se torna primavera.

Não dizemos que a primavera se transformou em verão.

(Shobogenzo Genjokoan de Mestre Eihei Dogen -1200-1253)

Budismo é uma tradição religiosa com inúmeras ordens e subordens, cujas interpretações e adaptações dos ensinamentos de Buda podem inclusive se contradizer.

Neste trabalho vou me dedicar especialmente ao Zen Budismo, tradição Soto Shu - ordem fundada no Japão pelo Mestre Eihei Dogen, no século XIII – conforme me foi ensinado e transmitido por meus mestres: de ordenação monástica nos Estados Unidos da America do Norte (Taizan Maezumi Roshi), de prática monástica no Mosteiro Feminino da Província de Aichi (Kakuzen Shundo Roshi) e mestre de transmissão do Darma (Yogo Suigan Roshi). Cada um de meus mestres e mestra pertencem a linhagens diferentes, embora todos sejam da mesma ordem monástica.

É importante salientar esses detalhes, pois o que vou escrever aqui reflete uma das inúmeras visões possíveis dentro da própria ordem monástica Soto Shu.

As questões que proponho levantar neste trabalho são as seguintes:

Quem ou o que somos nós, seres humanos?

O que entendemos por vida e o que entendemos por morte?

Precisamos nos preparar para morrer? Morrer é uma arte?

Precisamos nos preparar para viver?

A vida é uma arte?

Como sentimos a morte?

Como cuidamos de quem está morrendo/vivendo, de quem está vivendo/morrendo, de quem viveu, de quem morreu?

O que é a morte?

O que será que existe, ou o que se passa tanto no momento da morte como do pós morte?

Haverá outras vidas?

Há céu, inferno, purgatório?

Quem julga, condena, absolve, indica, escolhe para onde ir?

Há para onde ir?

Existe alma eterna? Ou tudo se aniquila com a morte?

Buda nega essas duas visões – tanto de uma alma eterna como a de que tudo se extingue com a morte.

Qual é esta terceira visão?

Por que orar?

Por que fazer cerimônias fúnebres, serviços memoriais?

Não será possível entrar em detalhes ou me aprofundar em cada um dos temas acima, mas me proponho a traçar algumas reflexões baseadas em textos e práticas comuns da minha tradição religiosa.

Feita esta introdução, volto ao texto inicial.

O autor desse texto, Mestre Eihei Dogen (lê-se Dooguen) é o fundador da ordem Soto Shu, no Japão, e tem sido reconhecido nos meios acadêmicos - tanto no Oriente como no Ocidente, como um importante religioso, filósofo, escritor e poeta. Mestre Dogen é um monge do século XIII, no Japão, e um revolucionário em sua época e, quem sabe, em todas as épocas.

A Iluminação não como prazer sensorial nem como algo que se possa falar sobre ou pensar sobre. Pois se pensarmos não atingiremos. Um estado de consciência extremamente sutil e profundo.

E é só através de acessarmos esta sutileza, clareza, profundidade que poderemos responder às nossas perguntas, que poderemos cessar as dúvidas e nos libertar.

Do que nos libertamos?

Das amarras do nascimento-morte.

Nos libertamos da vida-morte.

Pois penetramos o conhecimento de que tudo, a cada instante, está nascendo-morrendo e logo não há nascimento a ser desejado nem morte a ser rejeitada.

Mas, esse pensamento não é uma criação de Mestre Dogen. É uma releitura (religião = religare, relegere) dos ensinamentos clássicos, do fundador histórico do Budismo – Xaquiamuni Buda.

Buda, este nosso fundador, viveu na Índia. Era produto de sua época, mesmo que seus ensinamentos transcendam espaço e tempo. Nasceu Ksatrya, a casta dos guerreiros proprietários de terras. Era um jovem feliz, inteligente, culto, bom esportista, bom guerreiro, bonito, amado, casado, pai de um menino recém nascido.

Nada lhe faltava. Nem alimentos, nem amor, nem aprovação social. Poder-se-ia dizer que tinha tudo para ser completamente feliz. E era.

Mas também era curioso. Como viveriam as pessoas de outras castas, em outras circunstâncias que não a sua?

Fez, então, quatro excursões fora das áreas reservadas aos nobres e se surpreendeu encontrando a pobreza, a velhice, a doença e a morte.

Sim, a morte o surpreende e maravilha. Corpos cremados à beira do Rio Ganges, derretendo pele, corpos, ossos, sentimentos, sensações, alegrias, tristezas. E procurando respostas à inquietação que o assalta, segue o exemplo dos sadhus – os renunciantes – e renuncia a todas suas alegrias, prazeres, amores, ternuras.

Corta os longos cabelos – símbolo da casta – e assim, sendo um ninguém, um renunciante, um sem casta, adentra as montanhas. Encontra grandes mestres, pratica diligentemente, mas ainda não penetra a iluminação, a liberdade da sabedoria suprema.

Senta-se, então em Zazen. A meditação de todos e todas Budas.

Senta-se e percorre as encruzilhadas dos pensamentos, dos desejos, das aversões, das ansiedades, das aflições.

Percorre a própria mente.

Morre.

Morre para a idéia de um eu separado e único. Morre para as tentações dos prazeres sensoriais e das competições intelectuais. Morre para o mundano e atravessa o rio de nascimento e morte em grande tranqüilidade. Chega à margem de Nirvana, paz plena de conhecimento e compaixão.

Durante 49 anos ensinou a inúmeras criaturas o Caminho da Iluminação e da libertação. Todos que deveriam ser despertos assim o foram. E, no dia que hoje chamamos de 15 de fevereiro, entre duas árvores, fez seu último ensinamento e tranquilamente penetrou o Parinirvana. Não dizemos que Buda morreu. Buda não morre. Buda adentra o Nirvana final. A grande tranqüilidade.

Antes de silenciar disse a seus alunos e pessoas presentes

“Façam do Darma o seu mestre e eu viverei para sempre.”

Darma significa a Lei Verdadeira. O que move o céu e a terra, os pensamentos e as ações, a vida-morte.

Buda pediu a seus alunos e alunas que não se lamentassem pois o corpo é descartável, mas os ensinamentos da verdade não.

Seu corpo humano foi cremado e suas cinzas guardadas em várias urnas. As relíquias sagradas. Disputadas por vários reinos. Sentiam-se abençoados em ter os restos mortais de um Buda em suas terras. Traria bem aventurança, pois havia sido um grande renunciante, um santo, um sábio.

E foi este Buda Histórico, -Xaquiamuni Buda (em inglês Shakyamuni Buddha), quem disse: o ensinamento supremo é livre do nascer e do morrer.

A Índia, berço de inúmeras tradições religiosas, estava, na época de Buda, dividida em um sistema de castas rígido, o qual se baseava na crença em reencarnações.

Buda nega esse sistema e afirma:

Um brâmane não o é por nascimento, mas por suas palavras, gestos e pensamentos.

Contrariando a maneira tradicional indiana de compreender vida-morte, Buda nos deixa conceitos básicos de que tudo está interligado, interconectado numa teia de causas, condições, efeitos.

Nada surge por si só.

E tudo está incessantemente se transformando.

Somos essa transformação.

Em cada instante nascem e morrem células em nosso corpo.

No corpo Terra nascimento-morte é incessante. No corpo universo ou multiverso, pluriverso, também. É impossível cessar o movimento, a atividade.

Mas nós humanos temos a condição de compreender um pouco além de nós mesmos. Acessar a essa sabedoria é encontrar a libertação do ciclo de nascimento-velhice-doença-morte.

Libertar-se da morte é entrega e aceitação.

Isso não significa que as pessoas não devem procurar todos os meios de minimizar sofrimento e dor e tentar viver o mais tempo possível. Significa compreender que vida-morte são uma unidade.

Ora, o que é muito interessante ao ler os textos clássicos do Budismo (isso quero dizer os textos mais antigos e reconhecidos como autênticos) encontramos entre eles as chamadas lendas Jetavana, que seriam histórias das vidas anteriores de Buda. Vidas nas quais ele teria criado causas e condições propícias para vir a se tornar um Buda.

“Vida-morte é a vida de Buda.

Se você se apegar a um aspecto ou se rejeitar o outro perderá Buda.

Quando não houver nem apego nem aversão você é capaz de penetrar a mente-coração Buda pela primeira vez. Mas não avalie isto intelectualmente nem explique com palavras. Quando você transcende corpo-mente penetra no nível Buda. Buda age em você e você tendo fé em Buda, reconhece em si mesma (o) Buda liberta (o) dos sofrimentos de nascimento-morte, sem esforço, sem ansiedade.” (Mestre Zen Eihei Dogen, Soto Zen no Japão no século XIII)

A vida é um período em si mesma e a morte é um período em si mesma.

Assim como a cinza não volta a ser brasa, a morte não volta a ser vida.

Em cada instante perene e eterno vida-morte se manifestam em atividade incessante.

Quando a vida se manifesta tudo é vida. Existência absoluta, presente, passada e futura, começo, meio e fim. Assim sendo é chamada de não nascida – existência completa.

Cessação da vida também é existência absoluta e tem seu passado e seu futuro. Assim sendo destruição é chamada de não destruição.

A vida não se transforma em morte, da mesma maneira que a Primavera não se transforma em Verão.

A Primavera é um período em si mesma. O Verão um período em si mesmo.

Quando falamos vida tudo que existe é apenas vida.

Quando falamos em morte, tudo que existe é apenas morte.

Na vida somos vida, na morte somos morte. Sem desejar uma, sem odiar a outra.

Assim a Vida é um período, com princípio meio e fim. A Morte é um período tendo princípio, meio e fim.

Vida-morte é um continuum incessante de transformação sem uma entidade fixa ou permanente.

Mestre Dogen rejeita a idéia dualista de corpo e alma, assim como qualquer pensamento dualista é por ele rejeitado.

Buda também rejeitou a versão de uma alma permanente – conhecida no Budismo como a Heresia de Senika, cujas raízes estão nos Upanishads, texto hinduísta antigo – e também combateu a idéia que tudo terminaria com a morte, nada mais havendo – o nihilismo materialista.

Se acreditamos na Lei da Causalidade, as causas e condições de uma vida não se extinguem ao fim de uma vida.

Joan Stambaugh, professora catedrática de Filosofia no Hunter College da Universidade da Cidade de Nova Iorque, escreveu no capítulo Nascimento e Morte do seu livro Impermanência é Natureza Buda:

A questão se a alma continua a existir ou não após a morte pressupõe que nascimento é o princípio de um processo contínuo, vida, e que a morte é o fim. Se não aceitarmos este ponto de vista de que a vida é uma duração do tempo, iremos encontrar uma maneira diferente de questionar vida e morte.

Vida não é o princípio de um processo. Morte não é o fim do processo. Colocando de outra maneira, o “processo”, o que está acontecendo, é concebido de maneira errada. Na verdade, é suficiente dizer que é concebido, isto é, distorcido por nossa camada conceitual.

Mestre Dogen, no capítulo Shoji – Vida-Morte, de sua obra Shobogenzo escreveu:

A vida é contida na morte e a morte contida na vida. Ainda assim vida é vida e morte é morte. Isto quer dizer, esses elementos são independentes em si mesmos e ficam sós, sem requerer qualquer existência ou referencia fora de si mesmos. Pessoas comuns pensam da vida como algo assim como um carvalho (começa com uma semente, cresce e morre) e pensam na morte como algo que não mais se move. Entretanto, assim como o conceito de um carvalho se diferencia da árvore real, as idéias sobre a vida geralmente conflitam com a própria vida. Na compreensão verdadeira, a vida nunca é um obstáculo. A vida não é a primeira atividade e a morte a segunda. A vida não é relativa à morte, nem a morte à vida.

A relação (ou não-relação) de vida e morte tem a ver com estar presente

(viver ou morrer) na situação-darma*. Na situação deste átimo de segundo, deste instante, sem antes nem depois. Sendo o Tempo. Quando a compreensão vida-morte é desnudada dos conceitos de duração de tempo estaremos lidando com o ser tempo. Somos o tempo. Somos a vida. Somos a morte.

Cada ser humano é um agregado de cinco elementos: forma física, sensações, percepções, conexões mentais e vários níveis de consciência. A forma física é formada pelos cinco elementos, que constituem toda a vida do céu e da terra. Causas e condições propícias e uma forma se manifesta. Causas e condições se transformam e as formas se transformam.

A mente, os vários níveis de consciência, igualmente estão neste constante fluir dependendo de causas e condições.

Quando nasce uma criança fazemos uma celebração. Ritual de dar boas vindas. Em vários momentos da vida há rituais que marcam estágios da existência. No final da vida os rituais também são muito importantes e significativos.

A pessoa que está no final da vida, evidentemente, sabe que está no final. Nós somos a vida deste corpo-mente.

Entretanto podemos não nos aperceber por uma interpretação errônea de uma consciência chamada de intermediária, que transmite informações da consciência central - que tudo sabe, que tudo permeia, que tudo coordena, que tudo memoriza, chamada de alaya shiki ou consciência armazenadora - para a consciência que rege ou coordena as consciências relacionadas aos cinco órgãos dos sentidos.

Esse nível de consciência intermediária, que também leva informações dos órgãos dos sentidos para a consciência armazenadora, pode interpretar erroneamente as mensagens, causando assim distorções no sistema de compreensão.

Esse erro de interpretação pode causar muito sofrimento, dor e até mesmo idéias falsas de si mesmo, como a de considerar que temos em nós uma entidade eterna.

E a pessoa pode pensar que não está morrendo.

Então, o ritual correto é fazer ver ao moribundo que está morrendo. Não há nada a esconder nesse momento. Somos um processo em transformação.

Vida-morte é um processo incessante de transformação.

O ritual do fim da vida é importante. Para os que morrem, para os que vivem.

Fechamos um círculo. Para nós budistas esse círculo leva 49 dias após o óbito.

Morrer é como adentrar outra dimensão, como ir fazer uma viagem a lugares novos e desconhecidos. Ao mesmo tempo esses lugares são familiares. Conforme o carma – ações que deixam marcas, impressões na realidade – abrem-se mundos diversos para a pessoa que está deixando a vida. Podem ser universos de luz e alegria, podem ser de sofrimento e dor, podem ser campos, animais, plantas belíssimas ou cenários aterrorizadores. Nesse momento dizemos à pessoa que tudo surge de sua própria mente. Que não se atemorize. Que compreenda e, sem apegos e sem aversões, vá à luz infinita, liberte-se da vida e da morte.

Acreditamos que se houver o verdadeiro arrependimento por ações, palavras e pensamentos prejudiciais cometidos em qualquer época, os mundos de sofrimento e dor se transformam em esferas de harmonia.

Assim, o ritual de despedir-se é muito importante. Inclui o arrependimento e a entrega a Buda. É preciso terminar bem o livro desta vida. Livro com prefácio, vários capítulos e um final. Esse final é um outro começo, de outro livro, com outro título e outras inúmeras possibilidades.

Não é o mesmo livro, nem o mesmo personagem, mas outro livro.

Como ondas no mar.

Tudo é o oceano, que recebeu águas de inúmeros rios. Causas e condições formam ondas. Cada onda como se fosse uma existência. Cada uma interdepende da outra, mas não é a outra. Interligadas e ao mesmo tempo únicas. Transformando-se a todo instante. As causas e condições de uma onda se tornam efeitos em outras e assim por diante. Mas cada uma tem começo, meio e fim.

Felizes os que conscientemente podem morrer.

Orando e agradecendo a vida. Abençoando e se despedindo com ternura dos que ficam. Entregando-se à experiência seguinte, sem apegos e sem aversões.

O filme traduzido ao Português como A Partida”, que recebeu o Oscar em 2009, chamado em Japonês de Okuri hito ou Okuribito – a pessoa que encaminha – é um filme muito interessante sobre os cuidados com o morto, com a morta, numa área rural ao norte do Japao. Não apenas um corpo, um lixo a ser descartado, saindo pelas portas dos fundos dos hospitais e das casas.

Mas um corpo sagrado, chamado de Hotoke – o mesmo que Buda.

Esse corpo sagrado, que viveu uma existência, precisa ser tamponado de forma cuidadosa e amorosa. O ritual feito em frente aos familiares, a troca de roupas, a maquiagem, o rosto voltando a ter a fisionomia corada da vida. A despedida, a cremação.

Na cerimônia religiosa budista, pode ser feito tanto no velório (chamado de O Tsuya – Noite do Orvalho) ou na própria cerimônia fúnebre, é entoado o poema do arrependimento:

Todo carma prejudicial alguma vez cometido por mim

Devido minha ganância, raiva e ignorância

Nascido de meu corpo, boca e mente

Agora, de tudo, me arrependo

Arrepender-se é transformar-se, é purificar-se. Depois do arrependimento é feito o refúgio nas Três Jóias, os Três Tesouros budistas: Buda, Darma e Sanga.

Buda, o ser iluminado, a sabedoria suprema.

Darma, a Lei verdadeira, a Verdade Superior.

Sanga, a comunidade em harmonia.

Um não existe sem o outro. Nessa trindade confiamos e a essa trindade retornamos e nos entregamos, na certeza que nos acolhe e protege.

Assim, os mortos são encaminhados e sempre rezados, até 49 dias, quando acreditamos completar um ciclo vida-morte.

Se o budismo tibetano fala de 49 bardos, 49 estágios intermediários apos a morte, o budismo japonês também fala de 49 dias de transmigração, de passagem, encerramento de um ciclo vida-morte. Assim sendo, uma vida poderia ter durado um dia ou cem anos, mas o período morte corresponderia sempre a apenas 49 dias humanos. Após 49 dias a morte deixa de ser, a morte morre.

Quando a morte termina, a vida começa. Mas não a mesma vida, nem a mesma morte. Nada jamais se repete.

No Japão, continuamos orando depois desses quarenta e nove dias. As cerimônias são de cem dias, um ano, três anos, cinco anos, sete anos, treze anos, dezessete anos, vinte e três anos, vinte e cinco anos e assim por diante até os cinqüenta anos do falecimento. Se a família se manteve unida por cinqüenta anos, orando por um ancestral, dizemos e que esse/a ancestral se tornou um anjo/a da guarda e que protegerá seus/suas descendentes.

Preparar-se para a morte é preparar-se para a vida. É estar pronta a cada instante, fazendo o melhor de si a cada momento. Pois nunca sabemos quando e onde as causas e condições que tornam possível nossa vida serão rompidas.

Aos que se vão abruptamente agradecemos a vida que compartilharam, quer tenha sido de um dia, de meses, ou de muitos anos.

E que possam seguir em paz, tranqüilidade, e que nós, que aqui ficamos, completaremos o que tenha de ser completado na ternura e no cuidado do amor que desconhece fronteiras.

Todo o processo de finalização da vida é murmurado, orado, abençoando e invocam-se a presença, a luz, a serenidade dos seres sábios, iluminados e benfazejos - Budas e Bodisatvas – para que mostrem o Caminho da Luz Infinita.

Sem medo e sem expectativas fantásticas.

Não há exclusões ou discriminações – os serviços religiosos são feitos para qualquer pessoa, quer sua morte tenha sido provocada intencionalmente ou não. Isso inclui suicidas, assassinatos, acidentados, abortos, além da morte natural por velhice ou doença.

Em vida, vivemos. Somos a vida.

Quando a morte chega, penetramos a morte. Somos a morte.

Budismo interpreta a existência humana como vida-morte e não apenas como algo que vai morrer. Assim vida e morte não estão em oposição. A morte não precisa ser vencida, superada. Mas, a libertação é do nascimento-morte ao invés de ser uma conquista da morte. O objetivo não é a imortalidade e a vida eterna através da conquista a morte, mas o não nascido e o não morto - estado de nirvana realizado diretamente e através da vida-morte pela libertação da própria vida-morte. Este é o ponto fundamental.

Nesta perspectiva há uma completa e pura realização liberta de qualquer antropocentrismo. Todos os seres são a entidade integrada da natureza Buda. Quando Xaquiamuni Buda teve sua experiência mística, a libertação da vida-morte, exclamou:

Eu, a grande Terra e todos os seres juntos, simultaneamente, nos tornamos o Caminho.

Este estado de não dualidade, de integridade é que o monge vietnamita Thich Nath Hahn, fundador de Plum Village, na França, chama de interser. Intersomos. Tudo existe em um processo incessante de surgir e desaparecer. Todos interligados, interconectados a todos, na grande web, teia, rede da existência.

Vida-morte são em si mesmo Nirvana.

Sem vida a ser desejada sem morte a ser rejeitada.

(Nirvana é a grande paz sábia, grande tranqüilidade, o extinguir das aflições e das dúvidas – é o estado de libertação de todos os Budas, de todas as Budas).

Que possamos todos nos tornar o Caminho Iluminado.

Apreciando a vida-morte.

Maha Prajna Paramita (Grande Sabedoria Completa).

* Darma de Buda – se refere aos ensinamentos de Buda. Darma com letra maiúscula sempre se refere à Verdade Suprema. Darma com letra minúscula (sua posição no darma) significa todo e qualquer fenômeno.

BIBLIOGRAFIA

Abe, Masao – A Study of Dogen, his Philosophy and Religion – State of New York University Press, Albany US 1992

Buda Xaquiamuni – Breve Parnirvana Sutra

Dogen, Eihei – Shobogenzo

Kim, Hee Jin – Dogen Kigen – Mystical Realist – The Association for Asian Studies – The University of Arixona Press, tucson, Arizona – 1980

Stambaugh, Joan – Impermanence is Buddha Nature – University of Hawaii Press – Honolulu – 1990

Autor: Monja Coen Fonte: www.monjacoen.com.br


Notas de Pedro S S Vaz