quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O Bodhisatta e as Seis Paramitas

O Bodhisatta e as Seis Paramitas


Pema Chödrön é uma monja buddhista norte-americana e uma das estudantes mais brilhantes de Chögyam Trungpa Rinpoche, famoso mestre de meditação. Ela é autora das obras The Wisdom of No Escape e Start Where You Are, e também professora em Gambo Abbey (Nova Scotia, Canadá), o primeiro monastério tibetano na América do Norte estabelecido para ocidentais.

Segundo Chödrön, a felicidade está ao nosso alcance, e no entanto tantas vezes a perdemos de vista, ironicamente na tentativa de evitar dor e sofrimento. O texto radical e compassivo de Pema Chödrön vem de encontro às nossas expectativas e hábitos de conduta Quando Tudo Se Desfaz (Editora Gryphus), e nos confronta com a sabedoria buddhista. Existe somente uma atitude em relação ao sofrimento, ensina Chödrön, e essa atitude é a que caminha na direção das situações difíceis com afabilidade e curiosidade, se deixando levar pela insegurança da situação. É ali, no meio do caos, que descobrimos a verdade e o amor indestrutíveis.

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Suponha que exista um lugar aonde poderíamos ir para aprender a arte da paz, uma espécie de campo de treinamento para guerreiros espirituais. Em vez de gastar horas e horas nos disciplinando para derrotar o inimigo, poderíamos passar horas e horas desfazendo as causas da guerra.

Tal lugar poderia ser chamado de campo de treinamento do bodhisattva — ou treinamento para os servidores da paz. A palavra bodhisattva tem a ver com aqueles que se comprometeram com o caminho da compaixão. Esse campo de treinamento poderia ser dirigido por Nelson Mandela, Madre Teresa ou Sua Santidade, o Dalai Lama. Mais provavelmente, seria dirigido por pessoas que nem mesmo conhecemos e de quem nunca ouvimos falar, apenas os homens e mulheres comuns de toda parte do mundo que dedicam sua vida a ajudar os outros a se livrarem da dor.

Os métodos ensinados no treinamento do bodhisattva poderiam incluir a prática de meditação e tonglen. Poderiam também incluir as seis paramitas — as seis atividades dos servidores da paz.

A palavra paramita significa "ir até a outra margem". Essas ações são como um bote que usamos para atravessar o rio do samsara. As paramitas são também chamadas ações transcendentes porque são baseadas em dar um passo além das noções convencionais de virtude e não-virtude. Elas nos treinam para irmos completamente além das limitações da visão dualista e para desenvolvermos uma mente flexível.

Um dos principais desafios desse campo seria evitar tornar-se moralista. Com pessoas vindas de todos os países, haveria muitas opiniões conflitantes sobre o que é ou não é ético, sobre o que é ou não proveitoso e, provavelmente, logo precisaríamos pedir às pessoas mais sensatas e despertas do local que dessem um curso sobre flexibilidade e humor!

A sua própria maneira, Trungpa Rinpoche idealizou um curso assim para seus alunos. Ele pedia para memorizarmos certos cantos e alguns meses depois de a maioria de nós ter conseguido aprender, mudava a letra. Ele nos ensinava determinados rituais e queria que praticássemos com muita precisão. Quando estávamos quase começando a criticar aqueles que erravam ao praticá-los, ele nos ensinava os rituais de forma totalmente diferente. Mandava imprimir lindos manuais com todos os procedimentos corretos mas, de modo geral, eles já estavam desatualizados antes mesmo de serem publicados. Após anos desse tipo de treinamento, começa-se a desistir de ter controle. Se as instruções de hoje são para colocarmos tudo do lado direito, fazemos isso tão impecavelmente quanto possível. Se amanhã as instruções são para colocar tudo do lado esquerdo, nós as cumprimos com todo o coração. A idéia de que existe uma única maneira correta como que se dissolve em névoa.

Meditação e tonglen são métodos bastante testados para treinar a mente rígida na habilidade de adaptar-se e deixar fluir. As seis paramitas complementam essas práticas e trazem o treinamento para todas as atividades de nossa vida. Elas se tornaram os meios para transformam tudo que fazemos em uma maneira de viver a arte da paz.

O que torna as paramitas diferentes das ações comuns é que são baseadas no prajna. Prajna é uma maneira de ver que continuamente dissolve qualquer tendência a usar as situações para conseguir alguma base sob os pés. É uma espécie de detector de besteiras que nos protege contra sermos cheios de razão.

Quando estamos sendo treinados na arte da paz, não nos fazem qualquer promessa de que, já que temos boas intenções, tudo vai dar certo. Na verdade, não há nenhuma promessa de qualquer tipo de realização. Em vez disso, somos encorajados a apenas olhar profundamente para a alegria e para a tristeza, para o riso e o choro, para a esperança e o medo, para tudo aquilo que vive e morre. Aprendemos que a gratidão e a ternura são o que realmente nos cura.

Isso não significa que vamos dizer: "Não é tanto por mim, mas se eu mudasse o mundo, ele seria melhor para as outras pessoas." É menos complicado que isso. Não nos dispomos a salvar o mundo — perguntamos a nós mesmos como estão os outros e refletimos como nossas atitudes afetam o coração dos demais.

As cinco primeiras ações transcendentes são generosidade, disciplina, paciência, empenho e meditação. Elas são inseparáveis da sexta — o prajna, que torna impossível utilizar nossas ações para conseguir segurança. O prajna é a sabedoria que corta o imenso sofrimento decorrente de tentar proteger nosso próprio território.

Em si mesmas, as palavras generosidade, disciplina, paciência e empenho podem ter uma conotação rígida para muitos de nós. É possível que elas soem como uma pesada lista do que "devemos" ou "não devemos" fazer, ou nos façam lembrar das regras escolares ou da pregação dos moralistas. Entretanto, essas paramitas não têm nada a ver com estar à altura de algo. Se pensarmos que elas se referem a alcançar algum padrão de perfeição, nós nos sentiremos derrotados antes mesmo de começar. É mais correto expressar as paramitas como uma caminhada explanatória, não como uma série de mandamentos gravados em uma pedra.

A primeira paramita é a generosidade, a jornada para aprender a dar. Quando nos sentimos inadequados e sem valor, armazenamos coisas. Estamos com tanto medo — medo de perder, medo de nos sentirmos ainda mais feridos pela carência. Essa avareza é extremamente triste. Ver como nos agarramos e apegamos com tanto medo pode até dar vontade de chorar. Esse apego nos causa enorme sofrimento. Queremos consolo mas, em vez disso, reforçamos a aversão, o sentimento de pecado, a sensação de que somos um caso perdido.

Quando vamos além da pobreza de estar atado, as causas da agressão e do medo começaram a se dissolver por si mesmas. Portanto, a idéia básica da generosidade é treinar-se para pensar grande, para fazer a nós mesmos o maior favor do mundo e parar de cultivar nossos próprios esquemas. Quanto mais experimentamos a riqueza fundamental, mais conseguimos abrir mão de nosso apego.

Essa riqueza fundamental está disponível a cada momento. A chave está em relaxar: relaxar diante de uma nuvem no céu, de um passarinho com asas cinzentas, do som do telefone que está tocando. Podemos ver a simplicidade nas coisas como elas são. Podemos experienciar os cheiros e sabores, sentir as emoções e ter lembranças. Quando somos capazes de estar bem ali sem dizer: "Eu definitivamente concordo com isso" ou "eu definitivamente não concordo com isso", mas apenas estando ali muito diretamente, encontramos a riqueza fundamental por toda parte. Ela não é nossa nem de ninguém, ela está sempre disponível para todos. Nas gotas de chuva e nas gotas de sangue, na melancolia e no prazer, essa riqueza é a natureza de todas as coisas. Ela é como o sol que brilha para todos sem discriminação. É como um espelho, já que está disposta a refletir qualquer coisa sem aceitar ou rejeitar.

A jornada da generosidade consiste em conectar-se com essa riqueza, apreciando-a tão profundamente que ficamos dispostos a nos desfazer daquilo que a bloqueia. Tiramos nossos óculos escuros, nossos casacos compridos, nossos capuzes e disfarces. Em resumo, nós nos abrimos e nos permitimos ser tocados. Esse processo é chamado de construção da confiança na riqueza que tudo permeia. Na vida cotidiana, no nível mais comum, nós a experimentamos como flexibilidade e cordialidade.

Quando alguém toma formalmente o voto do bodhisattva, no momento mais importante da cerimônia, entrega um presente ao mestre. As instruções são para que se dê algo precioso, algo de que é difícil separar-se. Certa vez, passei um dia inteiro com um amigo que estava tentando decidir o que dar. Assim que ele se resolvia por alguma coisa, seu apego por tal objeto tornava-se intenso. Depois de algum tempo, estava se sentindo em frangalhos. O simples pensamento de perder apenas um de seus objetos favoritos era mais do que podia suportar. Mais tarde, mencionei esse episódio a um mestre que estava em visita. Ele disse que essa situação poderia representar uma oportunidade para que esse homem desenvolvesse compaixão por si mesmo e por todos que estivessem igualmente presos no sofrimento do apego — por todos aqueles que simplesmente não conseguem abrir mão.

Dar bens materiais pode ajudar as pessoas. Se são necessários alimentos e podemos dá-los, fazemos isso. Se são necessários abrigos, livros ou remédios e podemos dá-los, fazemos isso. Da melhor forma possível, cuidamos de qualquer pessoa que precise de nós. Entretanto, a verdadeira transformação ocorre quando abandonamos nosso apego e nos desfazemos daquilo que julgávamos impossível dar. As atitudes tomadas no nível mais exterior têm o poder de desfazer padrões profundamente enraizados de apego a si mesmo.

À medida que conseguirmos dar desse modo, poderemos ensinar essa habilidade aos outros. Quando tocamos a simplicidade e a bondade de tudo, e percebemos que fundamentalmente não estamos atolados na lama, é possível compartilhar esse alívio com os demais e prosseguir juntos na jornada. Compartilhamos o que já aprendemos juntos na jornada. Compartilhamos o que já aprendemos sobre tirar as viseiras e abrir as armaduras, sobre ser destemido o bastante para remover a máscara.

Também podemos dar de presente o dharma. Na medida em que somos capazes, damos instruções sobre meditação. Falamos às pessoas sobre tonglen. Mostramos livros e fitas, avisamos sobre palestras e sessões de prática. Damos às pessoas ferramentas para que descubram por si mesmas o que nos encorajo a soltar nosso apego, o que nos encorajou a pensar grande.

Dissolver as causas da agressão exige disciplina, uma disciplina suave mas muito precisa. Sem a paramita da disciplina, simplesmente não temos o apoio necessário para evoluir.

Lembro o primeiro retiro que conduzi após a publicação de The Wisdom of No Escape [A Sabedoria de Não Ter Saída]. As pessoas, na maioria, vieram porque se sentiam inspiradas pela noção de maitri que permeia este livro. Lá pelo terceiro dia do programa, estávamos todos sentados em meditação quando, de repente, uma mulher se levantou, espreguiçou-se um pouco e deitou-se no chão. Mais tarde, quando perguntei a ela sobre isso, respondeu: "Bem, eu estava tão cansada que resolvi ser bondosa comigo mesma e me dar descanso." Foi então que percebi que precisava falar sobre a magia da disciplina e sobre não se deixar levar pelas próprias oscilações de humor.

A primeira vez em que meditei com os alunos de Trungpa Rinpoche foi em 1972. Ele estava há pouco na América do Norte e sua ambientação, como costumávamos chamar, estava começando a se desenvolver. Em um canto da sala, um homem havia se equilibrado em cima de três almofadas redondas e, a cada cinco ou dez minutos, elas desmoronavam. Então, ele se ajeitava mais uma vez e continuava. Outra aluna, a toda hora, dava um pulo e saía da sala chorando. Ela repetiu isso umas cinco vezes, durante uma hora de prática sentada. Quando iniciamos a meditação em movimento, havia tantas maneiras excêntricas e diferentes de praticá-la quanto o número de pessoas na sala. Um arqueava muito os joelhos e caminhava como se estivesse flutuando no espaço, outro, andava para trás. O conjunto era engraçado e nos distraía muito. Pouco depois disso, Rinpoche lentamente começou a introduzir uma forma padrão de meditação e as coisas se acalmaram bastante.

Não disciplinamos o que é "mau" ou que está "errado" em nós. Disciplinamos qualquer forma de fuga potencial da realidade. Em outras palavras, a disciplina nos permite estar bem ali e nos conecta com a riqueza do momento.

O que torna a disciplina livre de severidade é o prajna. Não é o mesmo que receber instrução para não desfrutar daquilo que é prazeroso ou para controlarmos a qualquer custo. Em lugar disso, a jornada da disciplina fornece o encorajamento que nos permite deixar fluir. É um tipo de processo de desconstrução que nos dá apoio para irmos contra a textura de nossos dolorosos padrões habituais.

No nível externo, podemos pensar na disciplina como uma estrutura — um período de meditação de trinta minutos ou uma aula de duas horas sobre o dharma. O melhor exemplo é provavelmente a técnica da meditação. Sentamos em uma determinada posição e permanecemos tão fiéis à técnica quanto possível. Apenas direcionamos uma leve atenção para nossa expiração, continuamente, atravessando alterações de humor, lembranças, dramas e tédio. O simples processo repetitivo funciona como um convite para que a riqueza fundamental entre em nossa vida. Dessa forma, seguimos as instruções, exatamente como outros meditadores anteriores a nós vêm fazendo há séculos.

Dentro dessa estrutura, prosseguimos com compaixão. Assim, no nível externo, a disciplina está em voltar à suavidade, à honestidade, ao deixar fluir. Nesse nível, ela consiste em encontrar o equilíbrio entre não estar nem muito tenso nem muito distendido — nem muito relaxado nem muito rígido.

A disciplina nos dá apoio para desacelerarmos e para estarmos presentes o bastante para viver nossa vida sem fazer dela uma grande confusão. Ela nos fornece encorajamento para darmos um passo adiante na direção de não termos um chão sob nossos pés.

O poder da paramita da paciência é que ela representa um antídoto contra a raiva, um meio para aprender a amar e apreciar tudo aquilo que encontramos no caminho. Paciência não significa resignação — suportar estoicamente algo. Em qualquer situação, em vez de reagir rapidamente, podemos mastigá-la, sentir seu cheiro, olhar para ela e estar abertos para ver o que está ali. O oposto da paciência é a agressão — o desejo de saltar e mover-se, de fazer pressão contra a vida, de preencher os espaços. A jornada da paciência envolve relaxar, uma sensação de encantamento.

Uma amiga me contou que sua avó, descendente em parte de Cherokees, costumava levar a ela e a seu irmão ainda pequenos para caminhar e observar os animais. Sua avó dizia: "Se vocês ficarem imóveis, poderão ver alguma coisa. Se ficarem bem quietos, poderão ouvir algo." Ela nunca usava a palavra paciência, mas foi essa a lição que eles aprenderam.

Tonglen é uma maneira de praticar a paciência. Quando queremos fazer uma súbita mudança, quando começamos a correr pela vida, quando sentimos que precisamos de soluções, quando alguém grita conosco e nos sentimos ofendidos, quando desejamos gritar de volta ou acertar as contas, estamos querendo pôr para fora nosso veneno. Em vez disso, podemos nos conectar com a inquietação humana fundamental, com a agressão humana básica, praticando tonglen para todos os seres. Assim podemos enviar uma sensação de espaço que acalma ainda mais a situação. Ao sentar e ficar ali, damos espaço para que a reação habitual não aconteça. Nossas palavras e ações podem ser muito diferentes, apenas porque, antes de mais nada, demos a nós mesmos um tempo para tocar, sentir e ver a situação.

Como as outras paramitas, o empenho tem uma qualidade de jornada, de processo. No início, percebemos que nem sempre conseguimos praticá-lo. A questão torna-se então: como entrar em contato com a inspiração? Com o brilho e a alegria que estão disponíveis a cada momento? O empenho não tem nada a ver com esforço. Não se trata de um projeto a terminar ou de uma corrida que precisamos vencer. É como acordar em um dia de frio e neve, em uma cabana na montanha, prontos para uma caminhada e saber que, antes de mais nada, é preciso levantar e acender o fogo. Gostaríamos de ficar deitados, aconchegados, mas levantamos e acendemos o fogo porque a luminosidade do dia que nos aguarda é maior que nossa vontade de ficar na cama.

Quanto mais nos conectamos com uma perspectiva mais ampla, mais nos unimos a uma viagem alegria. O empenho é o mesmo que entrar em contato com nossa fome de iluminação. Ele nos permite agir, dar e trabalhar com apreço por tudo que surge no caminho. Se realmente soubéssemos quanto sofrimento nossa tentativa de evitar a dor e buscar o prazer traz ao planeta como um todo — como essa atitude nos torna infelizes e interrompe a ligação com nosso coração e inteligência fundamentais — sairíamos correndo e praticaríamos meditação como se a casa estivesse pegando fogo. Praticaríamos como se uma enorme cobra tivesse acabado de cair em cima de nós — não pensaríamos que temos tempo de sobra e que podemos deixar esse assunto para mais tarde.

Pelo prajna, essas ações tornam-se os meios para abandonar nossas defesas. Todas as vezes em que damos algo, sempre que praticamos disciplina, paciência ou empenho, é como se estivéssemos tirando de cima dos ombros uma pesada carga.

A paramita da meditação nos permite continuar nessa jornada. Ela é o alicerce para uma sociedade iluminada que não está baseada em vencer ou ser derrotado, em ganho ou perda.

Quando sentamos para meditar, podemos nos conectar com algo incondicional — um estado mental, um ambiente básico que não segura ou rejeita nada. A meditação é, provavelmente, a única atividade que não acrescenta nada ao cenário. Tudo pode vir e ir, sem maiores floreios. A meditação é uma ocupação completamente não-violenta, não-agressiva. Não preencher o espaço e permitir a possibilidade de contato com uma abertura incondicional — essas atitudes nos fornecem a base par uma verdadeira mudança. Vocês podem achar que isso é propor a si mesmo uma tarefa quase impossível. Talvez seja verdade. Por outro lado, entretanto, quanto mais sentamos com esta estabilidade, mais descobrimos que, no final das contas, ela é sempre possível.

Quando nos apegamos a pensamentos e lembranças, estamos nos apegando àquilo que não pode ser agarrado. Quando tocamos esses fantasmas e permitimos que eles se dissipem, podemos descobrir um espaço, uma pausa na tagarelice, um vislumbre do céu aberto. Esse é nosso direito inato — a sabedoria com a qual nascemos, a manifestação ampla e clara da riqueza e da abertura primordiais, da própria sabedoria primordial. Para isso, tudo que precisamos é repousar sem distrações no presente imediato, neste exato momento. E, quando formos arrastados por pensamentos desejosos, esperanças e medos, mais uma vez podemos voltar ao momento presente. Estamos aqui. É como se o vento nos carregasse e o próprio vento nos trouxesse de volta. Podemos repousar no espaço que existe quando um pensamento termina e o próximo ainda não começou. Nós nos treinamos em voltar para a essência imutável deste exato momento. É daí que vem toda a compaixão e inspiração.

A sexta paramita é o prajna, aquilo que transforma todas as ações em ouro. Diz-se que as outras cinco paramitas podem nos dar pontos de referência, mas o prajna corta tudo isso. O prajna nos transforma em desabrigados. Não temos nenhum lar e, por isso, podemos finalmente relaxar. Não há mais luta. Já não é preciso morder. Já não é preciso tomar partido.
Às vezes, sentimos uma enorme saudade de nossos velhos hábitos. Quando trabalhamos com a generosidade, percebemos nossa nostalgia pelo desejo de apegar-se. Quando trabalhamos com a disciplina, podemos observar como queremos pular fora e não nos conectarmos de jeito algum. À medida que trabalhamos com a paciência, descobrimos nossa vontade de acelerar. Quando praticamos o empenho, percebemos nossa preguiça. Com a meditação, vemos nossa discursividade sem fim, nossa inquietação e nossa atitude de "pouco me importa".

Portanto, simplesmente deixamos que essa nostalgia exista, sabendo que todos os seres humanos sentem o mesmo. Existe um lugar para a nostalgia, assim como existe espaço para tudo nesse caminho. Ano após ano, simplesmente continuamos a desistir de ter alguma base.

Esse é o treinamento do bodhisattva, o treinamento dos servidores da paz. O mundo precisa de pessoas treinadas assim — de políticos bodhisattvas, policiais bodhisattvas, pais bodhisattvas, motoristas de ônibus bodhisattvas, bodhisattvas atendendo no banco e no supermercado. Somos necessários em todos os níveis da sociedade. Somos necessários para transformar nossas mentes e ações, para o bem dos demais e para o futuro do mundo.

(Chödrön, Pema. Quando tudo se desfaz: instruções para tempos difíceis.
Traduzido por Helenice Gouvêa. Rio de Janeiro: Gryphus, 1999. Pág. 137-147.

http://www.dharmanet.com.br/vajrayana/chodron4.htm

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