quarta-feira, 31 de março de 2010

Os Três Refúgios

Em Busca do Corpo do Dharma, o Corpo da Verdade

Hoje eu gostaria de entrar um pouco mais em detalhes quanto ao assunto da fé. No nosso encontro passado dissemos que o objeto fé não deveria ser uma idéia, uma noção. Deveríamos tentar o máximo possível para persistir na prática. A fé deve ser desenvolvida baseada na nossa percepção, na nossa experiência direta.

Na tradição budista praticamos os Três Refúgios: Eu busco refúgio no Buda. Busco refúgio no Dharma. Busco refúgio na Sangha. Sempre digo que buscar refúgio não é propriamente um problema de crença. É um problema de prática. Não significa ter que declarar a fé no Buda. Nós precisamos realmente buscar refúgio no Buda. Mas o que significa buscar refúgio no Buda? Como isso é feito?

Quando olhamos profundamente, vemos que os Três Refúgios podem ser compreendidos de duas maneiras. Uma é a prática de buscar proteção. Desejamos ser protegidos. A vida é cheia de perigos, não sabemos o que nos acontecerá hoje ou amanhã, e por isso temos a sensação de viver na insegurança. Todos temos a necessidade de refúgio, de buscar proteção interior. Por isso, refugiar-se no Buda significa buscar segurança no Buda.

Depende de como percebemos e compreendemos o que e quem é o Buda, bem como se a nossa prática é mais ou menos profunda e podemos fazer a distinção entre "budismo popular" e "budismo profundo". Estas duas coisas não são necessariamente opostas. Em princípio, podemos pensar que o Buda é diferente de nós - outra pessoa. Algumas pessoas talvez pensem que o Buda é um Deus, e outras sabem que o Buda é um ser humano como nós, mas alguém que praticou e alcançou um nível muito elevado de iluminação, compreensão e compaixão. Entretanto, pensamos que aquela pessoa é alguém diferente de nós e que temos que ir ao seu encontro em busca de refúgio: Buddham Saranam Gacchami. Vou ao encontro do Buda em busca de refúgio.

Se praticarmos direito, algum dia chegaremos a compreender que o Buda realmente não é outra pessoa. O Buda está entre nós, porque a substância da qual o Buda é feito é a energia da conscientização, da compreensão e da compaixão. Se praticarmos direito e prestarmos atenção a Buda, saberemos que a natureza do Buda está dentro de nós. Nós temos a capacidade de despertar, de ter compreensão e compaixão. Por isso, agora fizemos progresso e estamos buscando o Buda dentro de nós. Buda deixa de ser o outro. Buda pode ser encontrado em qualquer lugar, especialmente dentro de nós mesmo. A não ser que entremos em contato com a natureza de Buda ou com a comunidade budista, não poderemos chegar a Buda. Se Shakyamuni, o Buda histórico, possui a natureza do Buda, nós também temos a nossa própria natureza de Buda. É onde teremos que chegar.

Quando começamos, dizemos: "Refugio-me no Buda." Posteriormente dizemos: "Refugio-me no Buda dentro de mim." É por isso que os chineses, japoneses, vietnamitas e coreanos cantam quando recitam os Três Refúgios. "Refugio-me no Buda dentro de mim”. "Refugio-me no Buda, aquele que me mostra o caminho nesta vida. "Aquele" que me mostra o caminho nesta vida começa por ser Shakyamuni, o Iluminado. Mas se praticarmos bem conseguiremos progredir. Então saberemos que ele não é outra pessoa, porque têm a natureza do Buda dentro de nós e nos refugiamos nesta natureza interior. Torna-se uma experiência direta, e o objeto da nossa fé deixa de ser uma idéia sobre uma pessoa chamada Shakyamuni, uma idéia sobre a característica do Buda, sobre a natureza do Buda. Neste momento não estaremos tocando a natureza do Buda como uma idéia, mas como uma realidade. A natureza do Buda é a capacidade de estar desperto, consciente, concentrado e sensato. E sabemos muito bem que aquela é a realidade que podem tocar dentro de nós mesmos a qualquer momento.

Refugiar-se no Buda significa tocar a natureza do Buda em nós, tocar a semente da iluminação em nós, ter uma experiência direta da natureza desta iluminação, para obter e abrir o pensamento para a iluminação, para a profunda impressão da iluminação. Bodhicita é o desejo mais profundo em cada um de nós, o desejo de nos tornarmos despertos, conscientes, de nos libertarmos do sofrimento e ajudar os seres vivos.

Buscar refúgio no Buda desta maneira será a prática de gerar a energia do amor. Vermos o sofrimento em nós mesmos e ao seu redor, e estarmos determinados a dar um fim neste sofrimento, entrando em contato com a natureza da compreensão, da compaixão e da iluminação em nós. Assim, nos tornamos propensos à iluminação, e isso desperta o interesse em nos tornarmos um Bodhisattva, para trazer alívio e transformação a todos os seres vivos. É uma afirmação muito poderosa e uma prática também muito poderosa. Uma vez plenos da energia de Bodhicitta, nos tornamos imediatamente um Bodhisattva.

"Obter a mais intensa disposição para a iluminação" quer dizer de um modo bastante direto que a mente mais elevada é Bodhicitta - a produção da mente do amor. Sabemos de imediato que não se limita a uma simples fórmula a ser recitada ou a uma tentativa de buscar refúgio ou proteção. É muito mais do que isso. Significa proteção, claro, mas é o tipo mais elevado de proteção. Quando entendermos que temos a natureza do Buda dentro de nós, quando soubermos que a energia da mente do amor está em nós, então nos tornaremos um Bodhisattva e conseguiremos enfrentar qualquer espécie de perigo ou dificuldade.

Refugiando-me no Dharma interior, desejo que todos aprendamos e dominemos os portais do Dharma, e assumamos, juntos, o compromisso com o caminho da transformação. Quando nós queremos realmente nos refugiar no Dharma, precisamos aprender e dominar todos estes ensinamentos e práticas oferecidos pelo Buda e a Sangha. “Assumamos juntos o compromisso com o caminho da transformação" significa que a prática deve ser contínua, todos os dias da nossa vida, e que o trabalho de transformação deve ser feito todos os dias. Então não é apenas um problema de crença, de proteção, mas de prática. O Dharma é para ser praticado. Uma simples declaração não ajuda muito. É fundamental que vivamos conforme a afirmação que fizemos.

Refugiando-me na Sangha interior, desejo que todos sejamos capazes de erigir as quatro comunidades, orientando, admitindo, educando e transformando todos os seres vivos. As quatro comunidades são a Sangha dos monges, das monjas, dos homens leigos e das mulheres leigas.

Quando nós recitamos o Terceiro Refúgio, sabemos que temos coisas a fazer. Nosso trabalho é ajudar a construir a Sangha, porque a Sangha é o único instrumento através do qual podemos compreender o ideal do Buda e o Dharma. Uma Sangha verdadeira é como um veículo transportando o Buda e o Dharma. Sem a Sangha não podemos ajudar os seres vivos. Não podemos fazer o trabalho de transformação no mundo. Por isso, quando nos refugiamos na Sangha precisamos realmente participar do trabalho de construção da Sangha. É necessário que usemos nossos talentos para reunir, envolver e torná-la um corpo sólido. Também significa educar, transformar e fazer com que a Sangha seja mais bonita.

Se fizermos uma pequena comparação com a tradução antiga, veremos algumas diferenças. A tradução antiga diz: "Quando me refugio no Dharma interior, fico ansioso para que todos sejam capazes de penetrar profundamente na tripitaka, os três cestos, e sua sabedoria será tão grande quanto o oceano." A nova frase é uma fórmula mais prática. Quando nos refugiamos no Dharma, não temos apenas que aprender os Sutras, precisamos realmente estarmos familiarizados e dominarmos as práticas concretas, os portais do Dharma. E, junto com outras pessoas, empenharmos no caminho da compreensão. Não é suficiente desejar que todos sejam capazes de penetrar profundamente nos três cestos, que consistem no discurso e na percepção dados pelo Buda, bem como na apresentação sistemática dos seus ensinamentos transmitidos um século após o seu falecimento. Significa que você pode ser um líder, unificar e liderar a Sangha e que não existem obstáculos – e fazê-lo livremente.

Se a pessoa se considera um bom praticante, então a construção da Sangha é o seu trabalho. Onde quer que esteja, precisa investir o seu tempo e energia na construção da Sangha. A pessoa organiza os quatro componentes da Sangha: monges completamente ordenados, monjas totalmente ordenadas, homens leigos e mulheres leigas. Ela reúne estes quatro componentes e admite, educa e transforma seres vivos.

A prática das Cinco Faculdades: fé, aplicação, conscientização, concentração e percepção. Fiel ao princípio, precisamos buscar a maneira de prosseguir. O princípio é estabelecido no início. O objeto da fé não deve ser uma noção pura e simples, uma mero conceito ou uma idéia. Deve ser uma verdadeira percepção da realidade, verdadeira experiência direta.

De forma que quando alguém diz "Creio no Buda. Creio no Dharma. Creio na Sangha", o Buda, o Dharma e a Sangha não devem ser simples idéias se nós realmente queremos evoluir. "Creio na natureza da iluminação inerente dentro de mim" pode ser uma declaração de fé feita por budistas. Juntamente com aquela declaração, a pessoa precisa praticar, precisa ser capaz de tocar e reconhecer a natureza da iluminação dentro dela mesma; caso contrário, não será uma prática, será apenas uma declaração, nada mais que uma idéia.

Qual é a natureza da iluminação? Existem tantas pessoas, inclusive budistas, que falam sobre a natureza da iluminação, mas que na verdade não sabem o que é - o que é a característica budista. A natureza da iluminação é o que temos e podemos tocar na via cotidiana. Já sabemos que conscientização é a energia que podemos gerar dentro de nós. Quando caminhamos meditando, temos consciência de cada passo que damos. Caminhar meditando é o que nós podemos fazer. Sabemos que a conscientização é algo real e não uma simples idéia, e que, se for bem trabalhada, pode desenvolver a força da conscientização todos os dias, transformando-a em uma fonte poderosa de energia dentro de nós.

Existe uma canção que diz que a conscientização é o Buda. Ao gerar esta energia, trazemos Buda ao momento presente como a energia de proteção que nos orientará e apoiará. Queremos proteção, mas qual o tipo de agente que nos está protegendo? Uma noção? Não, uma noção não é suficiente para nos proteger. Nem mesmo a noção do Buda, de Deus, do Espírito Santo são suficientes para nos proteger. Precisamos de algo mais concreto do que uma noção para que a proteção seja real.

Sabemos que a conscientização é a energia que pode nos proteger. Quando estamos dirigindo, é a conscientização que evita acidentes. Se você é um trabalhador manual em uma fábrica, é a conscientização que evita acidentes. Conversando com alguém, a conscientização ajuda a não fazer declarações que podem provocar o rompimento do relacionamento. A conscientização, então, é o Buda, o agente para a proteção. É o Buda, não como noção, mas como algo verdadeiro, real. Ao tocar a natureza da conscientização interior, sabemos que estamos sobre uma base sólida.

Todos os Budas e Bodhisattvas afirmam que temos, interiormente, a natureza da iluminação. A natureza da iluminação é a base dos nossos seres e da nossa prática. Se estamos de posse disto, não há motivo para ficarmos confusos. Desta base, a energia da conscientização, da concentração e da sabedoria pode nascer como um agente protetor. Também significa que temos uma orientação a seguir. Sem uma orientação, estamos perdidos. Não podemos ser felizes. É muito importante sabermos aonde ir; caso contrário, sofreremos muito. Esta é a natureza da fé como compreendida nos ensinamentos de Buda.

(Do livro “Jesus e Buda Irmãos” – Thich Nhat Hanh)

Comente esse texto em
http://sangavirtual.blogspot.com