segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dharmakara

IV. O Voto Original do Salvador


1

De acordo com o mito narrado por Sakiamuni a Ananda no Daimoryoju-kyo (Grande Sukhavati-vyuha Sutra) muito, muito atrás no passado, inumeráveis e mais que inumeráveis e incompreensíveis Kalpas atrás, existia um Buda chamado Lokesvararaja. Nesta época havia um Rei que tendo ouvido o sermão desse Buda sentiu uma grande alegria em seu coração e manifestou uma profunda aspiração de buscar a verdade.

Ele tornou-se um Bhiksu (monge) e era chamado Dharmakara (Hozo). Ele sobressaía por seu conhecimento, não existindo ninguém que o igualasse.

Ele chamou o Buda Lokesvararaja e disse: Ó honrado pelo mundo! Eu concebi em mim uma profunda aspiração por Bodhi (iluminação). Eu suplico que me instrua em tudo sobre os caminhos da verdade. Eu a praticarei e conceberei uma Terra Búdica e adornarei da forma mais pura essa ilimitada e sublime Terra Búdica. Eu desejo poder atingir a iluminação de uma vez neste mundo e eliminar as raízes do nascimento e da morte, da dor e do sofrimento.

Então o Buda Lokesvararaja disse ao Bhiksu tudo sobre os vinte e um bilhões de Terras Búdicas, o que é bom e o que não é bom nos seres ali, o que é grosseiro e o que é refinado nas Terras, mostrando cada uma de acordo com o desejo do Bhiksu.

Então, tendo escutado a exposição do Buda Lokesvararaja e tendo visto todas as excelências e sublimidades das Terras Búdicas, o Bhiksu com sua mente serena, com sua vontade imparcial, se absorveu em profunda meditação pelo espaço de cinco Kalpas para pensar nos caminhos puros e sublimes para adornar sua Terra Búdica.

Tendo alcançado o fim da meditação o Bhiksu Dharmakara escolheu todos os vinte e um bilhões de maravilhosas Terras Búdicas. Tendo realizado os caminhos, ele chamou o Buda Lokesvararaja e disse: “eu já realizei os caminhos puros e incorruptíveis que levam à formação de uma sublime Terra Búdica”. Buda Lokesvararaja disse ao Bhiksu: “Você deve agora falar sobre o que há em sua mente, pois o momento chegou. Que possam todos os aqui congregados aspirar por Bodhi e sentir grande alegria. Os Bodhisatvas ouvindo suas palavras irão praticar o caminho e irão realizar seus próprios inumeráveis votos”.

Então o Bhiksu Dharmakara fez, na presença do Buda Lokesvararaja e diante de todos os seres celestiais, maus espíritos e todos os outros seres, quarenta e oito votos insuperáveis. Esses votos são o que é chamado o “Oto Original” (Purna-Pranidhana, Hongan) do Bodhisatva Dharmakara. Entre os quarenta e oito votos o mais importante é o décimo-oitavo, que como segue: “Dispondo eu da Budeidade, os seres da dez direções que, com fé de todo o coração, crêem com júbilo e desejam nascer em minha terra e também consigam me invocar mesmo por dez vezes, se houver os que não nasçam, não disporei da Perfeita Iluminação”.

Então, novamente tendo feito os quarenta e oito votos, Bodhisatva Dharmakara declamou esses versos: “Eu fiz os votos insuperáveis, pelos quais eu certamente atingirei o mais elevado caminho. Se esses votos não forem realizados não possa eu atingir a iluminação”. “Se eu não for o grande doador por Kalpas imensuráveis de modo a salvar todos os pobres e miseráveis, não possa eu atingir a iluminação”. “Quando eu tiver atingido o caminho do Budato, meu nome será ouvido em todas as dez direções”.

“Se houver alguém que não possa ouvir meu nome, não possa eu atingir a iluminação”. “Possa eu tornar-me o mestre de todos os seres celestiais e terrenos, tendo buscado o caminho mais elevado através da prática altruística do Santo Trabalho, da meditação profunda e correta e da Pura Sabedoria”. “Meu poder impensável deve irradiar sua luz sobre os mundos inumeráveis, destruir a escuridão da corrupção, e libertar todos os seres da dor e da miséria”. “Dando-lhes o olho da Sabedoria, eu destruirei a escuridão da ignorância; fechado todos os meus caminhos eu os conduzirei ao Portal da Bondade”. “Quando eu tiver realizado o trabalho excelente, minha luz gloriosa deve brilhar tão intensamente sobre as dez direções que a luz do Sol e da Lua se extinguirá e as estrelas do céu se tornarão invisíveis”. “Abrindo o tesouro do Dharma em benefício de todos os seres eu distribuirei amplamente entre eles as Jóias da Felicidade; pregarei constantemente a voz leonina do Dharma no meio das multidões”.

“Tendo venerado todos os Budas, eu completarei os atos de virtude; tendo realizado o Voto e a Sabedoria eu me tornarei o herói do Universo”. “Como tu que possuis a Sabedoria Ilimitada, que brilha sobre tudo, eu também terei o poder ilimitado da Virtude e da Sabedoria. “Se meus votos forem realizados, todos os mundos devem abalar-se na raiz e choverão dos céus as flores maravilhosas”. Quando o Bodhisatva Dharmakara terminou de recitar esses versos a terra inteira tremeu de seis diferentes maneiras de uma vez, e o céu derramou as flores maravilhosas. Então espontaneamente soou uma música no paraíso que entoou as seguintes palavras de louvor: “Você certamente atingirá a mais elevada e perfeita iluminação”.

Então, segundo o mito, tendo feito os votos, Bodhisatva Dharmakara devotou-se inteiramente ao embelezamento de sua Terra Maravilhosa. A Terra Búdica que ele trouxe à existência era ampla, expansiva e inconcebivelmente única, não conhecendo declínio nem mudança. Por um período de inumeráveis, inconcebíveis e inexpressáveis Kalpas devotou-se à realização dos deveres de um Bodhisatva.

Em benefício de todos os seres ele praticou virtudes imensuráveis nunca concebendo a idéia de cobiça, ódio e malevolência.

Ele era perfeito em perseverança. Nenhuma dor o perturbava.

Ele era sereno em sua meditação. Nada bloqueava sua Sabedoria. Incansável era sua vontade. Sempre buscando a verdade pura, ele beneficiou todos os seres. Aonde ele desejava nascer aí nascia. Incontáveis foram os seres que ele ensinou, e que foram pacificamente assegurados no insuperável caminho da verdade. A sua boca exalava um odor puro como o Lótus azul. Todos os poros do seu corpo emitiam o perfume do sândalo que se espalhava por todos os mundos inumeráveis.

Correto e sereno era o seu semblante, e sua figura era inconcebivelmente maravilhosa. De suas mãos surgiam tesouros infindáveis: adornos, refeições, flores, estandartes e outras coisas para decoração. Apesar de todas essas coisas ele era livre e desimpedido.

Assim ele obteve o comando de tudo que necessitava, após realizar os deveres de um Bodhisatva. Resumindo, ele alcançou todas as virtudes pertencentes à vida de um Bodhisatva, que consiste na realização do Amor (Karuna) e da Sabedoria (Prajna).

O Bodhisatva Dharmakara já atingiu o Budato?

- pergunta Ananda a Sakiamuni – Ele já entrou no Nirvana?

Ou ele não atingiu ainda a iluminação?

Está ele ainda vivendo?

O Bodhisatva Dharmakara – Sakiamuni responde a Ananda, já atingiu o Budato e vive agora na região Ocidental a dez bilhões de países longe daqui. O mundo desse Buda é chamado “A Terra Pura da Paz e da Alegria”. Já se passaram dez Kalpas desde que o Bodhisatva Dharmakara atingiu o Budato. Ele está cercado de inumeráveis Bodhisatvas e possui a perfeição sem fim da sua origem Búdica. Ele é chamado o Buda da Luz Infinita (Amitabha), porque o alcance de sua luz vai além de qualquer medida. Ele também é chamado o Buda da Vida Eterna (Amitayus), porque a extensão de sua vida é totalmente incalculável, de forma que mesmo que todos os seres inumeráveis das dez direções, tendo se reunido em um lugar, possam unir seus pensamentos para medir a extensão de sua vida por um período de cem bilhões de Kalpas, e tentem conhecer a extensão de sua vida, mesmo assim não é possível conhecer o limite.

A essência do Voto de Amida é que ele não atingirá a iluminação até que através de sua iluminação todos os seres no Universo também se iluminem, ou seja, nasçam no país Búdico - A Terra Pura. Amida trabalha eternamente como o Salvador para realizar seu Voto Original. Ele é o Coração dos corações. Ele é o Coração Compassivo que sente necessidade de todos os outros corações.

Por sua múltipla atividade que irradia em todas as direções ele está preenchendo o desejo inerente de suas diferentes criaturas. Essa vontade profunda, esse propósito supremo agindo na profundidade de nossos corações é seu apelo em nós para que busquemos a libertação. A mais profunda aspiração do homem é tornar-se imortal, atingir a vida eterna. Essa nossa aspiração Amida também tem. É a vida eterna e absoluta que possui o mundo verdadeiro e é esse mundo, que inspira essa mesma aspiração. Amida é a eterna vontade salvadora, o Voto Original que age eternamente. Por outro lado, também e ao mesmo tempo Amida é o repouso infinito da perfeição porque de acordo com o mito, dez Kalpas já passaram desde que ele atingiu a Perfeita Iluminação. E como ele já atingiu a iluminação, daí se concluiu que nosso Renascimento ou Iluminação já se efetuou no tempo intemporal simultaneamente com sua iluminação.

Sim, nós precisamos saber que temos em nós aquilo em que o espaço e o tempo cessam de governar e aonde os elos de causa e efeito são fundidos na unidade.

Nessa morada eterna do espírito, a revelação de Amida, o Espírito Supremo já está completo. O verdadeiro, o todo consciente, o infinito está oculto na profundidade de nossa consciência.

A união com o Onisciente já está realizada no tempo intemporal. Ninguém pode buscar uma verdade além de seu ser presente, a menos que o buscador já seja uno em seu propósito mais profundo com a Vida Eterna em que toda verdade é expressa.

Essa unidade dos propósitos divinos e finitos já existe no fundamento de nosso coração, de forma que Amida é imanente, está toda noite conosco e é sentido em toda parte por nós. A qualquer momento em todas nossas intenções conscientes, em todos nossos esforços finitos somos unos com Amida. Uma vontade satisfeita encontra seu objetivo na vida de Amida e não procura outra. É todo o mundo do passado, presente e futuro, é essa vida universal em que implicam todos os nossos momentos de vida consciente. Amida é todo a nossa verdadeira vida, em que vivemos, morremos e temos nosso ser, e nele nós triunfamos e alcançamos, não os desejos cegos de nosso ser momentâneo, mas aquilo que nossos esforços sempre buscam, desejam e amam.

Podemos não ter uma plena consciência dessa vida em nós, mas ela está sempre presente em sua essência, em nosso ser mais profundo embora não tenhamos perfeita consciência disso. E essa vida completa e perfeitamente presente é Amida. Amida o espírito da alegria se dividiu em dois. A alegria, cujo outro nome é amor, tem por sua natureza que ser dual para sua realização.

Quando o cantor tem sua inspiração, ele se divide em dois; tem dentro de si seu outro ser como ouvinte, e a audiência externa é uma mera extensão desse seu outro ser. Um pai busca seu outro ser em Seu filho amado. É a alegria-amor que cria essa separação para realizar a união através da separação.

O amor é imensamente livre e ao mesmo tempo imensamente limitado. Se Amida fosse absolutamente livre, não haveria criação.

Amida, o ser infinito assumiu em si todo o mistério da finitude.

Ele voluntariamente colocou limites à sua vontade e nos concedeu domínio sobre nosso pequeno mundo. É como um pai colocando a seu filho alguns limites dentro dos quais ele seja livre de fazer o que quiser. Apesar de permanecer uma parte da propriedade do pai, ainda assim ele o libera da ação de sua própria vontade de amor e por conseqüência livre só pode ter sua alegria na união com outra vontade livre. Um amante necessita de duas vontades para a realização de seu amor, porque a consumação do amor está na harmonia entre duas liberdades. Da plenitude do amor, Amida se dividiu em dois. Ele escolheu esse nosso coração como seu amado, como seu outro ser, como seu ouvinte. Ele se prendeu ao homem e essa prisão feliz, esse parentesco de amor supremo já estava realizado em tempo intemporal. E ele que foi ganho na eternidade está agora sendo buscado no tempo e no espaço, em alegrias e sofrimentos, nesse mundo e nos inumeráveis mundos além. Nosso coração, como um rio, atingiu o Oceano de seu preenchimento em um extremo de seu ser, e no outro extremo está sempre atingindo; em um extremo é repouso eterno e completude e no outro movimento e mudança incessantes.

Quando nosso coração desperta para isso, quando percebe que ambos os extremos são inseparavelmente unidos, então ele descobre esse mundo como seu próprio lar reconhecendo o senhor desse mundo como seu próprio pai (oya). Ele vê o mundo penetrado por uma presença divina, o Infinito Amor Original manifestando-se em todas as coisas desse mundo. Então todos os serviços se tornam serviços de amor, todas as dificuldades e tribulações da vida aparecem-lhe como tentativas triunfantes surgidas para provar a força de seu amor.

Ele revelou os mistérios do mundo espiritual. Porém, eu repito, não podemos atingir a verdadeira espiritualidade através de sucessivas acumulações de conhecimento adquirido pouco a pouco. Não podemos crescer mais e mais em Amida. Ele é o Absoluto e não pode haver mais nem menos nele. A revelação do Espírito Supremo em nosso coração individual já está absolutamente completa como já vimos. Não podemos pensar nela como dependendo de nossos poderes limitados (jiriki) para sua construção gradual. Se nossa relação com Amida, Espírito Supremo, fosse algo de nossa própria criação, como poderíamos confiar nele como verdadeiro, e como nos poderia oferecer suporte?


2

O amor dá-se espontaneamente em sãsivas sem fim. Mas esses sãsivas perdem seu sentido completo se não alcançarmos através deles esse amor que é o doador. Para isso precisamos ter amor em nosso coração. Quando temos amor em nosso coração um simples sinal é de valor permanente para nós. Porque não é para nenhum uso especial. É um fim em si; é para nosso ser interior. Como um sinal de seu amor ilimitado por nós, Amida nos deu um sãsiva – o mais verdadeiro de todos os sãsivas. Ele nos deu seu Santo Nome (Nyogo) de forma que onde quer que pronunciemos seu nome e o ouçamos sendo pronunciado, possamos relembrar com uma aspiração profunda nossa união com ele já realizada em tempo intemporal. É seu chamado a nós, é sua busca por amor a nós.

NAMU-AMIDA-BUTSU !

É em reminiscência do Voto Original de Amida e de seu Amor Ilimitado por nós que recitamos seu santo nome.

É para relembrar que essa ilha de isolamento já foi atingida por ele, e que ele não nos esqueceu, e irá salvar-nos mesmo agora. É entregar o nosso ser e confiar absolutamente e sem dúvida em Amida Buda. Assim, não somos nós que pronunciamos seu nome, mas Amida que fala para si mesmo. É sua própria recitação, respirada em nossa respiração. No Anjin – Ketsujo-sho (Tratado do Estabelecimento Final da Mente Pacífica), escrito por um seguidor anônimo do ensinamento da Terra Pura, lemos: “O Nembutsu significa pensar em (nen) Amida Buda (butsu) e pensar no Buda é relembrar que o Buda rompeu os grilhões que prendem todos os seres no nascimento-e-morte através do poder ativo de seu Voto Original e assim ele criou as condições para seu nascimento na Terra da Recompensa onde uma vez que entrem eles nunca retrocederão.

Quando pensamos nesse mérito realizado pelo Buda, nós confiamos inteiramente no Voto Original, nossa atividade tríplice de corpo, palavra e mente é mantida pela Substância Búdica e somos elevados ao estado de iluminação que constitui o Budato. Assim, lembrem-se que nosso ser absorto no Nembutsu, ou seja, nossa recitação do nome de Buda, ou a veneração dele não é um ato originado em nós, mas é realizar o ato do próprio Buda Amida.

Ou, novamente em outro trecho do mesmo livro lemos: “O propósito de todos os Três Sutras (da Escola da Terra Pura) é manifestar o significado do Voto Original. Compreender o Voto é compreender o Nome, e compreender o Nome é compreender que o Buda Amida, trazendo à maturidade seu Voto e sua virtude em benefício de todos os seres, efetuou seu Renascimento (Ajo) mesmo antes de sua realização real. O que fez a substância da Iluminação não foi nada menos que o Renascimento de todos os seres nas dez direções do Universo. Por essa razão, nós que praticamos o Nembutsu devemos lembrar cada vez que ouvimos o nome de Buda sendo pronunciado, que nosso Renascimento já se realizou, porque o nome vem da Iluminação atingida pelo Bodhisatva Dharmakara que jurou não atingir a iluminação até que todos os seres nas dez direções alcancem o Renascimento.


3

Nosso Renascimento ou Iluminação já se realizou em tempo intemporal. Mas em virtude de nossa mente egocêntrica somos ignorantes desse fato. Nossa mente dualista e egocêntrica cria a dura separação do ser.

Ela agrilhoava nosso ser de fundir-se no tempo universal e tocar a unidade fundamental. Ela faz nosso ser grilhão, levando-nos a pensar que nosso ser, como ser é real e que é um fim em si mesmo.

Assim temerosos redemoinhos são criados em volta de diferentes centros – redemoinhos de egoísmo, de orgulho e poder. Isso nos leva a colocar obstruções e fortalecer o tempo todo a prisão do karma (go).

O significado original da palavra karma é “ação” (Kri), e uma ação ou um ato, bom ou mau, traz seu resultado no agente, e assim, karma é a lei moral de causa-e-efeito dominando a atividade humana. Nossas misérias e sofrimentos são causados por estarmos atados e presos com a corrente de ferro da atividade humana que corre ininterrupta desde tempos imemoriais.

Todos nós desde que nascemos carregamos o pesado fardo da imensa acumulação das atividades humanas no passado. Somos apanhados na teia do karma que nós, seres humanos, tecemos desde um passado desconhecido.

Nós somos o karma; karma é a própria vida humana. A totalidade d vida humana é uma prisão cujas barras são impossíveis de romper.

Quando as condições apropriadas amadurecerem, ocorre um evento, independente de nossa vontade. Nascimento, velhice, doença e morte atingem a todos com a severidade imparcial da qual não existe fuga.

Somos presos por todos os lados, dentro e fora com os grilhões da causalidade (inga) moral e física,de forma que não podemos fazer nada de acordo com nosso ideal e vontade. Mesmo uma ação feita com boa vontade freqüentemente traz maus resultados. Não é suficiente sermos sinceros, nem ter boas intenções. Quando sofrimento podemos causar aos outros sem desejá-lo ou sabê-lo! Podemos causar tanto mal através do desconhecimento quanto da rudeza. Porém não podemos nem mesmo controlar absolutamente nossos corpos ou regular nossos desejos. Não podemos com todos nossos esforços afastarmo-nos do mal, ou forçarmo-nos a seguir o caminho da virtude. O poder esmagador da necessidade kármica nos impele a deixar incompleto o bem que deveríamos fazer e a fazer o mal que não deveríamos. Quando refletimos sobre isso só podemos estremecer diante de nossa abismal pecaminosidade. Presos por todos os lados com os grilhões da necessidade kármica, encontramo-nos mergulhados em um redemoinho de pecado. Aonde quer que vamos, o pecado segue-nos como nossa própria sombra. Parece que não existe caminho para nos vermos livres sendo privados de vida. Mas o homem não é animal. Ele é consciente sob a consciência opressiva de nossa pecaminosidade, e essa consciência aponta o caminho da libertação.

Exatamente por sermos conscientes de nós mesmos e sabermos julgar nossos atos podemos ter uma percepção da realidade onde esse julgamento humano não possui valor.

Falando racionalmente, ser simplesmente consciente do pecado pode não ser mais que um estado de contemplação, mas em nosso coração sentimos que essa consciência tem raízes muito mais profundas e surge de nosso ser mais íntimo que é de alguma maneira relacionado com algo que transcende e ainda assim é nua verdade mais profunda. Nossa luta contra a existência pecadora é impulsionada por esse algo, por esse poder impensável. Se não fosse por isso não teríamos angústia, luta ou aflição de nenhum tipo.

Nossa consciência do pecado é assim sempre ligada a esse impulso.

Sem esse impulso em nosso coração não teríamos consciência do mal em nós, e assim sabemos que o mal é algo ligado ao bem ou à pureza.

É de fato o puro que pressiona tão persistentemente no domínio do pecado, fazendo o último sentir-se inquieto. O próprio fato de nosso sofrimento espiritual intenso é a promessa que podemos eventualmente transcendê-lo. No sofrimento espiritual, está simbolizada a infinita possibilidade da perfeição e eterno desabrochar da alegria.

O mal oprime-nos o tempo todo, mas sentimos apelo insistente de buscar a libertação. Esse apelo, esse impulso, que surge de nossa natureza mais profunda, do centro de nosso ser, manifesta-se como o Nembutsu. O Nembutsu é o navio que nos foi transferido por Amida para permitir-nos cruzar o mar turbulento da existência pecadora para a outra margem da felicidade. Essa passagem, essa transferência não é, porém um processo gradual de um estágio a outro. No mesmo instante em que tomamos o navio com absoluta confiança em Amida, encontramo-nos na outra margem; não existe gradação, nem progresso por etapas, mas um salto (ocho), uma transferência abrupta, uma continuidade discreta. Porque essa transferência (Parinamana: eko) é a ação do poder impensável – o Outro Poder (tariki) – não do auto-poder (jiriki).

Zendo (Shan-Tao, 613-681), um dos sete patriarcas do Shinshu, dá-nos uma alegoria sobre transferência em seu comentário sobre o Kanmuryojukyo (Amitayur – dhyana Sutra) que é um dos três sutras que estabelecem o ensinamento do Shinshu.

Havia uma vez um viajante que ia para o Oeste através de um vasto deserto. Era uma jornada solitária. Um dia ele ouviu um grande ruído muito atrás de si e viu um bando de ladrões e um bando de animais selvagens perseguindo-o. Imediatamente ele correu com energia e vigor para escapar do perigo. Mas deveras! Havia um rio em seu caminho. Media cem pés de largura e era dividido em duas correntes por um caminho estreito e branco, de quatro ou cinco polegadas de largura – uma à direita, uma corrente d`água turbulenta e sem fundo, e outro à esquerda, uma corrente ilimitada de fogo ardente. Parecia uma tentativa perigosa caminhar através desse caminho estreito e branco atingido o tempo todo pelo fogo e inundado pela água. No intervalo os ladrões e as feras já o estavam quase alcançando. Ele estava em desespero completo porque não podia nem avançar, nem parar, nem retroceder sem encontrar o perigo da morte. Mas no último momento esse pensamento surgiu em sua mente: se eu recuar os ladrões certamente cairão em cima de mim ; mesmo que eu escape deles as feras não me deixarão em paz. E se eu aventurar-me a avançar, como poderei escapar de ser varrido seja pela água seja pelo fogo? A morte cerca-me por todos os lados.

Meu fim virá de qualquer maneira. Porque não mover-me ousadamente para a frente? Quando ele finalmente decidiu, ouviu a voz no Leste: “vá direto através do caminho com uma firme resolução, porque é a única maneira de você escapar da morte”. Então outra voz veio da outra margem : “com pensamento correto e simplicidade de coração, venha direto para mim.”

“Não tenha medo de cair no fogo ou na água porque eu o protegerei do perigo”. Infinitamente encorajado por essas vozes, ele resolutamente caminhou através do caminho branco e instantaneamente alcançou em segurança a margem Oeste. Ele estava agora na Terra da Felicidade onde ele gozou a mais alegre e pacífica vida de fraternidade universal. O que significa esta história?

O viajantes somos nós. Essa margem representa a vida humana presa pela corrente contínua da necessidade kármica; a outra margem, o mundo espiritual da alegria eterna, da liberdade absoluta da prisão do karma.

O rio significa nossa abismal perversidade, a água turbulenta e o fogo ardente representam a cobiça e a crueldade às quais a mente humana está tão presa. A voz que vem dessa margem representa o ensinamento de Sakiamuni, e a voz da outra margem representa o grande coração compassivo ou o Voto Original de Amida. O caminho branco é o Nembutsu – o presente que nos é dado por Amida, o mais verdadeiro de todos os presentes. Quando percebemos que como seres humanos condicionados pelo karma não possuímos uma conduta em que possamos confiar e tomamos consciência de nossa atroz pecaminosidade, o Nembutsu surge da profundidade de nosso coração e alcançamos instantaneamente a outra margem, a margem da libertação. O que nos mantém do lado de cá dessa ponte misericordiosamente construída pela ilimitada compaixão de Amida é nossa vontade egocêntrica (Kakarsi) e nossa dúvida.

A menos que sejam removidos, o apoio de Amida não será ouvido. Fé incondicional na Grande Compaixão – passividade absoluta ou entrega absoluta ao Outro Poder é o único caminho direto e seguro que leva ao Renascimento na Terra Pura.

No Tannisho (Tratado de Lamentação das Heresias), Shinran declara:

“Os bons conseguem nascer na Terra Pura; com maior razão, pois, os maus o conseguirão”. Entretanto as pessoas costumam dizer que se os maus conseguem renascer na Terra Pura com muito maior razão os bons conseguirão. Esta última afirmativa parece à primeira vista razoável, mas ela vai contra o Voto Original de Amida. Isso porque aqueles que acreditam na salvação conseguida através de práticas virtuosas feitas com seu próprio esforço não confiam incondicionalmente no Poder externo e assim não se harmonizam com o Voto Original de Amida. Entretanto, se abandonarem sua confiança no esforço próprio para confiarem no Poder externo conseguirão o renascimento na Terra da Recompensa Real. A verdadeira intenção de Amida ao enunciar seu voto compadecido de nós, seres carregados de paixões mundanas e incapazes de nos libertarmos dos nascimentos e das mortes através de quaisquer práticas, é oferecer a Realização Búdica aos maus. Assim, o mau que confiar no Poder externo é o legítimo merecedor do renascimento na Terra Pura. Por isso o Venerável Mestre disse: “Se os bons conseguem o Renascimento, com muito maior razão os maus conseguirão”. “Quando firmes na certeza de que, salvos pelo Voto de Amida que escapa ao alcance do nosso pensamento, alcançaremos o Renascimento na Terra Pura, brota em nosso coração o desejo de recitar o Nembutsu, imediatamente alcançamos a graça de estarmos definitivamente seguros; sem a possibilidade de sermos rejeitados.

O Voto Original de Amida não faz distinções entre velhos e jovens, bons e maus, reclama apenas um coração sincero, puro e inabalável. Isso porque é um voto que visa salvar os seres carregados de pesadas culpas e profundo mal, que têm paixões e desejos fortes e resistentes. Assim, para se confiar no Voto Original não são necessárias outras práticas virtuosas superiores ao Nembutsu, nem se deve temer o mal por não existir mal que possa obstruir a ação do Voto Original de Amida.

“Para o praticante o Nembutsu não é nem uma prática ascética nem uma ação virtuosa. Não é uma prática ascética porque não é praticado com base na minha vontade. Não é uma ação virtuosa porque a ação virtuosa não depende da minha vontade. Já que o Nembutsu se baseia totalmente no Poder externo e na renúncia ao caminho do esforço próprio, não é ele uma prática ascética nem uma ação virtuosa”. “...Eu, Shinran, não tenho nenhum discípulo, pelo seguinte motivo: Se eu, por minha iniciativa, fizesse os outros recitarem o Nembutsu, eu poderia dizer que eles são meus discípulos; entretanto, os homens recitam o Nembutsu por obra do Poder de Amida; é um absurdo, pois, que eu os considere meus discípulos”.

“Eu recito o Nembutsu, mas não sinto vontade de pular e dançar de alegria, nem desejo de alcançar a Terra Pura o mais rapidamente possível. Como resolver esse problema? Tendo eu feito essa pergunta, o Mestre respondeu: “Eu, Shinran, também tinha essa dúvida: vejo que agora também tu, Yui-em, experimentas o mesmo estado de espírito. Meditando sobre esse ponto, cheguei à conclusão de que o fato de não me alegrar quando deveria sentir vontade de dançar no céu e na terra de tanta alegria é indício de que o Renascimento está absolutamente garantido. São as paixões que impedem que o coração se alegre quando ele deveria estar tomado de alegria. Entretanto desde o início Buda está ciente desse fato e nos considera como seres cuja essência consista em paixões e imperfeições.

“Uma vez cientes de que o Voto Compassivo do Poder externo é dirigido a nós, que temos tal natureza, podemos de uma vez por todas, considerá-lo infalível”

Quando a fé se estabelece com firmeza, a iniciativa do Renascimento passa inteiramente para o coração de Amida, não dependendo mais do crente.

Ainda que tenhamos um coração mau e impuro, se confiarmos inteiramente no Poder do Voto, ele espontaneamente adquirirá mansidão e paciência. Em qualquer circunstância, no que se referir ao Renascimento, o crente deverá evitar pensamentos de confiança em sua própria inteligência e refletir constantemente quão profunda é a graça por ele recebida de Amida.

Assim, praticará o verdadeiro Nembutsu, o Nembutsu que brota natural e espontaneamente. É um Nembutsu natural e espontâneo porque não depende da vontade do praticante. Por isso é chamado o Nembutsu do Poder externo. Resumindo, o Nembutsu não consiste simplesmente em pronunciar o nome de Amida e recordar sua grande compaixão. É a entrega de nossa vontade à vontade de Amida. É chegar aos nossos limites existenciais e saltar sobre o abismo que se abre diante de nós. A porta que pensávamos impossível de atravessar agora abre com um toque, e nossas limitações tendo sido transcendidas, reconhecemo-nos soberanos do vasto desconhecido.

Todos os grilhões da vida que nos cercavam por todos os lados desabam. Toda mancha e contaminação presa ao coração humano é sacudida. Não é nada mais que o Nembutsu que atravessa o abismo sem fundo de nossa existência pecadora e une nosso coração com o coração original na Terra Pura.

Mas aí está uma coisa que não podemos esquecer.

O coração assim nascido na Terra Pura nunca repousa nesse país, porque o coração assim purificado não é o coração humano. O coração tão logo atinge a Terra Pura volta para essa Terra e sente todo mal e sofrimento humano como seu próprio. Assim o coração puro e feliz e ao mesmo tempo sofredor, está constantemente alcançando a outra margem e voltando a essa margem – e essa transferência constante para lá (osoeko) e de volta para cá (genso-eko) em um ato é a vida espiritual ou naturalidade, a ação do grande coração compassivo.


extraido de: http://www.dharmanet.com.br/honganji/naturalidade4.htm